Pela leitura dos comentários dos leitores às notícias sobre as iniciativas ministeriais integradas no ano internacional da ferrovia declarado pela Comissão Europeia, vive-se um momento de entusiasmo e de esperança na correção do desinvestimento crónico na ferrovia.
Infelizmente, não tenho capacidade de me entusiasmar com as notícias. Por formação ou deformação profissional só posso discutir coisas concretas, mas fala-se muito em intenções. Que qualquer cidadão poderá dar contributos para o Plano Nacional Ferroviário que terá de estar pronto em 2022, conforme foi anunciado pelo sr MIH na sessão de 19 de abril no LNEC:
https://www.publico.pt/2021/04/19/economia/noticia/ferrovia-caminho-cidades-20-mil-habitantes-1959135
A base do meu contributo será que não deverá haver um plano ferroviário, mas dois, um centrado na rede convencional, existente, de bitola ibérica, a modernizar, e outro na rede de Alta Velocidade e novas linhas, a construir segundo os padrões europeus (todos, sem exceção) conforme os regulamentos das redes transeuropeias, o 1315 e o 1316, os quais, dizem os textos jurídicos comunitários, são vinculativos, o que tem sido soberanamente ignorado pelo poder político português e pela IP.
Esta separação (hierárquica, conforme propõem os tratados da qualidade, e orçamental, que é o que se tem praticado em Espanha, com sucesso) é indispensável para que a ferrovia em Portugal corresponda aos objetivos comunitários da rede única europeia e do Green Deal.
Por deformação profissional (no metro transitei da área de manutenção para a de estudos e desenvolvimento de infraestruturas) apenas enviarei como contributo sugestões para linhas novas e, o que me parece também corresponder melhor aos objetivos comunitários, para a retirada dos metropolitanos e redes urbanas do ministério do ambiente para o ministério das infraestruturas.
Curiosamente, já em outubro de 2020 tinha sido veiculada pelo governo, a propósito do PNI 2030, a intenção de estudar a ligação ferroviária das capitais de distrito em falta. Nessa altura elaborei um pequeno esboço para 3 tipos de redes de linhas novas em Portugal, as da rede TEN-T core (principal, objetivo 2030) , as da rede TEN-T comprehensive (complementar) e as da rede das capitais de distrito. Envio em anexo.
Como referido, estas linhas novas são propostas segundo os padrões da interoperabilidade europeia, que incluem desde a bitola UIC e alimentação 25 kVAC até aos limites dos gradiantes (1,2%), velocidades (250 km/h passageiros, 100-120 km/h mercadorias) e raios de curvas (mínimo da ordem de 5000 m). É evidente que sempre que estes padrões encontram condições topográficas desfavoráveis, os custos sobem, mas não parece acertado estar a poupar agora para termos linhas com severas limitações operacionais (caso da recuperação da linha da Beira Alta, por exemplo, quando para corresponder ao objetivo comunitário de transferência de 30% da carga rodoviária para a ferrovia (ou marítimo) quando se espera, para reequilibrio da economia nacional, o crescimento das exportações para a Europa. Contrariamente à ideia difundida, as exportações, mesmo terrestres, para a Europa além da Espanha superam já em tonelagem e valor as exportações para Espanha.
É este o principal argumento, além do carater vinculativo dos regulamentos 1315 e 1316, para a reivindicação de ligações ferroviárias à Europa além Pirineus em bitola UIC.
Porque só devo discutir coisas concretas, como disse, no esboço seguinte faço uma estimativa por alto, de cerca de, para as novas 3 redes, cerca de 22.800 milhões de euros com um esforço anual de 1.400 milhões de euros durante 16 anos. É uma perspetiva diferente da apresentada pelo sr MIH e seu assessor.
Mas claro que as nossas dificuldades financeiras são muito grandes, se bem que para fazer os projetos não seria necessário muito dinheiro, mas também há dificuldades para isso.
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Rede básica (core) 2030 »1000km x 20M€/km = 20.000M€ » cofinanc.40% » 12.000M€ » 12 anos (2021-2027) + (2028-2034) » 1.000M€/ano Rede complementar (comprehensive) 2050 » 400km x 20M€/km = 8.000M€ » cofinanc.40% » 4.800M€ » 6 anos (2034-2040) » 800M€/ano Rede adicional cap.distritos » 400km x 15M€/km = 6.000M€ » s/cofinanc. 10 anos 2035-2045 » 600M€/ano Esforço máximo 1.400M€/ano ca. 0,8% PIB |
Comentário à intervenção do vice presidente da IP Carlos Fernandes
De acordo com a notícia em
https://revistacargo.pt/carlos-fernandes-ip-ferrovia-com-investimento-sem-paralelo-e-foco-na-resolucao-das-cargas/
o eng.Carlos Fernandes recorreu a alguns argumentos que pela sua consistência justificam uma análise mais próxima. Inteiramente de acordo que os traçados das linhas antigas condicionam a sua exploração com bons rendimentos. É o mesmo problema das estradas antigas e das autoestradas, tem de se adotar traçados diferentes para estas.
Pena que só tenha utilizado este argumento para as linhas de bitola métrica. O raciocínio aplicar-se-á tambem às linhas para mercadorias existentes em bitola ibérica. No traçado antigo, com curvas e pendentes, o rendimento energético é inferior a linhas construidas de traiz com limitação das pendentes a 1,2% e do raio das curvas a 5000 m. Claro que ele argumenta que se está a corrigir o perfil da linha da Beira Alta, e a criar refúgios para cruzamento de comboios de 740m, mas o que se gasta em linhas antigas para melhorar o seu rendimento, ainda por cima mantendo a sua via única, será desperdício quando se construir a linha nova.
Por outras palavras, discordo do colega Carlos Fernandes quando diz que se atinge o objetivo da competitividade da ferrovia com a conclusão do programa 2020. Contas que fiz há uns anos (https://1drv.ms/p/s!Al9_rthOlbwehzNhuEExKreHeAex ) dão-me para o consumo de um comboio transportando 1400 toneladas de carga nas linhas existentes cerca de 52 Wh/ton-km o que compara com cerca de 32 Wh/ton-km em linhas de gradiante inferior a 1,2% e curvas de raios maiores que 5000m. Como o custo operacional é sensivelmente proporcional ao consumo de energia, deduzi que no primeiro caso (linha existente com bitola ibérica) o custo do transporte de 1 ton-km será de 1,67 centimos e , no segundo caso (linha nova com bitola UIC) de 1,2 centimos. Seria interessante comparar com os custos reais e com a anunciada melhoria devida às intervenções de modernização das linhas existentes. A abordagem de Carlos Fernandes ao invocar o número de comboios que saem com as exportações é muito válida porque dar condições para o aumento das exportações é essencial para o país.
Mas, para além do esclarecimento sobre os consumos energéticos (que são um fator crítico na operação e consequentemente nos processos de decisão), penso que também deverá ser esclarecida a sua afirmação de que saem atualmente 20 comboios por dia (deduzo que quase exclusivamente por Vilar Formoso) . podendo desde já duplicar-se este número. 40 comboios que saem diariamente significa 80 comboios por dia em circulação.
Contas que fiz também há tempos
dão-me para a linha da Beira Alta, em via única, uma capacidade de 15 comboios por sentido para velocidade média de 70 km/h e 3 pontos de cruzamento; para 10 pontos de cruzamento a capacidade aumenta para 37 comboios por sentido.
Ignoro quais os parâmetros utilizados no cálculo da IP, que me parece demasiado otimista.
Mais afirmou Carlos Fernandes que as obras em curso vão permitir num futuro próximo a saída diária de 70 comboios (140 comboios por dia nos 2 sentidos, provavelmente contando com as 3 ligações transfronteiriças, Valença, Vilar Formoso e Caia) e que isso poderá absorver "100% das mercadorias que saem para a Europa", parecem novamente afirmações otimistas.
Ora, em 2020 as exportações para a Europa pelos modos terrestres foram de 16 milhões de toneladas, o que requereria 16.000 comboios por ano, ou à volta de 50 comboios diários, um comboio de meia em meia hora.
Mas o que impressiona é que em 2020 as exportações por ferrovia para a Europa (incluindo Espanha) foram em 163 mil toneladas, o que requer à volta de 160 comboios por ano ou 1 comboio de 2 em 2 dias.
Como disse o presidente da Medway noutra altura
o transbordo em Irun não será suportável quando se atingirem 2 comboios diários (cerca 700 mil toneladas de carga ).
Mesmo que se possa dispor da plataforma de Vitoria ligada por bitola UIC a França, a solução mais económica para o tráfego além Pirineus , para além de comboios de 740m, será sempre a bitola UIC desde Portugal (conclusão de um estudo da própria IP :
Também carece de esclarecimento a afirmação de que o modo ferroviário tem uma quota modal de 9% no transporte internacional de mercadorias. Vejamos este gráfico do comércio externo com França por modo de transporte, do relatório do observatório transfronteiriço com os dados de 2017: Vejamos dados mais recentes do INE para o ano 2020 : C:/Users/Asus/Downloads/09Ativ%20Transportes%204T2020.pdf
exportações para a Europa em milhões de toneladas em 2020 por modo : marítimo 9,29 (35,1%) ferroviário 0,16 ( 0,6%) rodoviário 15,69 (59,2%)
Se adicionarmos o transporte nacional em milhões de toneladas (8,49 pelo modo ferroviário e 114,30 pelo modo rodoviário, a quota modal ferroviária será 6,19% para a ferrovia e 93,81% para a rodovia;
se considerarmos o transporte nacional e internacional exportador em Mton-km, então teremos 2544 pela ferrovia (9,5%) contra 24200 pela rodovia (90,5%). No entanto, o texto está a falar em comércio internacional, pelo que penso dever a questão ser esclarecida. Igualmente na sua intervenção o presidente da Medway
(https://revistacargo.pt/plano-ferroviario-nacional-deve-ser-ambicioso-ferrovia-tem-margem-para-crescer/ )
afirmou que a ferrovia tem 14% de quota de mercado. Considerando as exportações e importações, tivemos em 2020 35,7 milhões de toneladas para e de toda a Europa, sendo pela ferrovia apenas 0,72 (2,0%) . A quota ferroviária de exportações para Espanha é apenas de 1% contra 79,6% da rodovia.
Aparentemente, os valores apresentados pela IP e pela Medway pretenderão valorizar a ferrovia, o que será uma boa intenção, mas não parece realista, antes parecendo o velho hábito nacional de ganhar sempre nem que seja moralmente, e pela penúria, mostrando a necessidade de investimentos a sério conforme os regulamentos 1315 e 1316 com o evidentemente necessário cofinanciamento.
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