quinta-feira, 7 de abril de 2022

Alguns argumentos contra a construção de raíz das ligações ferroviárias à Europa em bitola europeia

 



ALGUNS ARGUMENTOS CONTRA A CONSTRUÇÃO DE RAÍZ DAS LIGAÇÕES FERROVIÁRIAS À EUROPA EM BITOLA EUROPEIA



O PRR prevê que novas linhas a serem construídas em Portugal sejam apenas em bitola ibérica. As razões para justificar essa decisão são a existência por mais uma ou duas décadas duma rede ibérica em Espanha e a existência de alternativas tecnológicas que permitem assegurar os tráfegos ferroviários internacionais entre a rede ferroviária portuguesa, em bitola ibérica, e as redes de bitola europeia em Espanha e outros países europeus.

Isso é verdade, mas também é irrelevante, porque o que está em causa não é a existência de soluções mas a sua competitividade. Essas soluções, os eixos variáveis, existem em Espanha há mais de 50 anos, e no entanto este país investe todos os anos centenas ou milhares de milhões de euros do OE (mais os Fundos Europeus) em linhas de bitola europeia que, se o Governo português estivesse correto, seriam teriam sido atirados para o lixo.

Será possível que se estes sistemas resolvessem o problema da bitola de forma competitiva, os espanhóis, que têm mais de 50 anos de experiência com estes sistemas, ainda não tivessem dado por isso? Acresce que os próprios fabricantes desses eixos, recentemente melhorados para mercadorias, em contínuos ensaios e ainda não aplicáveis às locomotivas,  afirmam explicitamente “este eje permitirá que coexistan tráficos de mercancías en ambos anchos y progresivamente se pueda cambiar el ancho de la red convencional existente en España, para adaptarlo al ancho internacional, lo que implicaría mejoras en los tráficos a/desde Europa a España y en la competitividad del transporte ferroviario de mercancías” [1], ou seja, destinam-se a facilitar a transição da bitola ibérica para a bitola europeia em Espanha e não a ser uma alternativa a essa transição da bitola. E compreende-se que assim seja: estes eixos são tecnicamente muito mais complexos que eixos standard, isto é, eixos fixos, por isso mais caros e pesados. Mas sendo uma tecnologia não standard, inegavelmente de alto nível de conceção e de garantia de segurança, a sua manutenção não pode ser feita como a de vagões de eixos fixos: assim, para tráfegos internacionais, cada vez que um vagão equipado com eixos variáveis precisar de reparações terá de ser rebocado para as instalações do fabricante em Espanha, ou em alternativa, obrigará o operador a manter permanentemente instalações de apoio e manutenção em diversos locais nas redes ferroviárias além-Pirenéus. É algo que nenhum operador considerará economicamente justificado para servir apenas um pequeno mercado como o português.

No resto da Europa ninguém usa eixos variáveis para a diferença ibérica de bitolas; existe apenas um fabricante polaco para utilização de âmbito limitado nos troços de bitola europeia e russa, realizações experimentais já antigas por dois fabricantes alemães para as mesmas bitolas (prevalece o sistema de elevação das caixas e mudança de bogies nos pontos de transição bitolas europeia-russa) e um fabricante suíço para as bitolas europeia e métrica.

Outro argumento que se usa contra a introdução da bitola europeia na rede ferroviária nacional são os custos, que se afirma serem gigantescos, da ordem das dezenas de milhar de milhões de euros (recorda-se que não se pretende substituir nas próximas décadas a bitola da rede existente, mas sim construir de raiz uma rede de bitola europeia).

Como se sabe, o custo de construção de linhas novas é independente da bitola. Então a que se deveria os custos gigantescos da bitola europeia? Como a IP coloca travessas de dupla fixação na rede existente, o principal são os custos de mais tarde efetuar a mudança da bitola alterando a posição dos carris, porque durante as obras numa linha, ao contrário de obras de manutenção correntes, a circulação fica interrompida continuamente durante a duração total das obras. Mesmo tratando-se de via dupla (o que não é o caso no troço Évora-Caia, contrariamente ao procedimento espanhol, em que a maior parte do percurso Plasencia-Mérida em linha nova é em via dupla), existem riscos significativos para o pessoal trabalhando numa via com circulação na outra.

Então esses custos não se devem a construir as linhas novas da rede TEN-T em bitola europeia mas devem-se aos efeitos indiretos, na economia em geral, devido às interrupções de tráfego ferroviário durante as obras de mudança da bitola. São custos de manter a bitola ibérica agora e mudar para a bitola europeia mais tarde, em vez de construir as linhas novas de raiz em bitola europeia, ou seja, são custos da bitola ibérica e não da bitola europeia.

Note-se que de acordo com a Comissão Europeia “The new rail lines which are or will be constructed and the rail lines which are or will be upgraded on that Corridor by 2030 (e.g. Lisboa-Porto, Sines-Grandola-Lisboa-Merida) are creating a UIC gauge rail network in Portugal“ [2]. A Comissão aceita que numa 1ºfase as linhas sejam construidas em bitola ibérica e travessas de dupla fixação (travessas polivalentes), para manter as ligações a Espanha em bitola ibérica durante mais tempo, mas assume que numa 2ªfase será feita a transição da bitola. Obviamente a coordenação com Espanha dos timings de chegada da bitola europeia às fronteiras é indispensável para que haja continuidade e era isso que se deveria fazer. Por outro lado, a manutenção da bitola ibérica dificulta o tráfego de mercadorias para além de Espanha, sendo certo que em 2021 o valor das exportações de bens por modos terrestres foi, para Espanha, de apenas 40% do total de exportações de bens por modos terrestres para a UE.

Outra objeção contra a bitola europeia: mas se as linhas da rede TEN-T forem construidas em bitola europeia Portugal ficará com duas redes de bitolas diferentes: isso fará incorrer em custos adicionais nas plataformas logísticas, portos e ramais particulares, duplicando linhas ou utilizando soluções de 3ºcarril, e em custos de novo material circulante ou adaptação do existente.

É justo que acréscimos de custos inevitáveis que os operadores ferroviários a operar em Portugal tenham para converter material circulante para a bitola europeia sejam subsidiados pelo Estado, para garantir condições de igualdade na concorrência com operadores de outras redes ferroviárias que venham a operar em Portugal, e que por terem material circulante de bitola europeia, não teriam esses custos.

A existência de duas redes também tornaria provável ou inevitável a utilização de intercambiadores e comboios de eixos variáveis, tanto para passageiros como mercadorias. Todos estes custos seriam custos adicionais da construção da rede TEN-T em bitola europeia de acordo com as especificações da UE. Provavelmente concluir-se-ia que esta situação deveria ser limitada no tempo para estes custos serem temporários e não permanentes, pelo que, depois da construção das linhas novas

i)                da rede TEN-T “core”

                                   Sines/Lisboa-Poceirão-Caia;
                                   Lisboa-Aveiro-Porto/Leixões;
                                   Aveiro-Mangualde-Almeida) e

ii)              da rede “comprehensive”

Porto-Vigo;

Évora-Beja-Faro-Huelva ,

e só depois, se sucederia uma 2ª fase de migração da bitola na rede existente para a bitola europeia. Mas nessa situação, nos itinerários de grande tráfego haveria a alternativa ferroviária das linhas da Rede TEN-T, que evitaria os gigantescos custos indirectos das interrupções de tráfego nas linhas existentes, anteriormente referidos. Assim, o custo principal da 2ªfase seriam os custos diretos das obras ferroviárias.

Uma estimativa feita em 2010 [3], indicava um custo médio de 0,5 milhões de euros/km, que aplicados à rede actual com cerca de 2600km, conduziriam a um custo, em 2010, de 1300 milhões de euros. Um custo total na atualidade, tendo em conta a inflação e os ramais particulares e infraestruturas ferroviárias dos portos e plataformas logísticas, não incluídos nos 2600km, poderia fazer o custo subir para o dobro aproximadamente. Para enquadrar este valor em termos relativos refira-se que é inferior ao que o Governo tem de injector na TAP para a salvar.

Mas conclui-se, como é óbvio que a introdução e migração para a bitola europeia na rede ferroviária portuguesa terá custos relevantes, embora muito inferiores ao que os seus detratores afirmam. A questão é: vale a pena fazer esse investimento ou não? Para responder a esta pergunta temos de analisar as consequências da alternativa, a manutenção indefinida da exclusividade da bitola ibérica.

 O cenário que se coloca de perda de competitividade da rodovia no transporte de mercadorias de média e longa distância é quase consensual, por várias razões:

i)                embora os problemas de poluição possam ter soluções técnicas com energia eléctrica ou outra, não se sabe qual será a competitividade destes sistemas, sendo certo que a eficiência energética do transporte rodoviário é inferior devido ao maior coeficiente de resistência ao rolamento pneu-asfalto

ii)        os problemas de congestionamento não têm solução com o tráfego rodoviário atual; estando toda a política dos Estados Membros da UE orientada para o investimento na ferrovia, como por exemplo nos novos túneis de base sob os Alpes [4], o estudo da ligação Alemanha-Dinamarca sob o mar [5] e em particular o investimento de centenas ou milhares de milhões de euros por ano da Espanha na rede ferroviária de bitola europeia tendencionalmente projetada para tráfego misto desde 2013 (passageiros e mercadorias). Por exemplo, prevê-se que o Corredor Mediterrânico, de França a Algeciras, em bitola europeia e tráfego misto esteja pronto em cerca de 5 anos [6].

Assim, sem a rodovia de média e longa distância, o comércio de Portugal com a UE, o seu principal parceiro comercial, fica dependente da via marítima, que por causa da baixa frequência, tempo de trânsito (congestionamento com limitação de velocidade no canal da Mancha e nos acessos aos portos como Antuérpia, Roterdão e Hamburgo) e mais transbordos nas ligações a origens/destinos no centro da Europa, não é competitivo para muitos sectores de actividade (ver o Anexo 2 de [7]).

Sem o investimento nas ligações interoperáveis à Europa em bitola europeia, a maior parte das nossas exportações teria de usar as plataformas logísticas espanholas ligadas à rede de bitola europeia, mais próximas, que a curto prazo será  a de Vitoria-Gasteiz e no futuro tenderão a ser as de Vigo, Salamanca e Badajoz. Não se contesta tratar-se de um nicho de mercado que possa interessar operadores como os que atualmente exploram as redes ibéricas. Mas estas redes não têm capacidade para absorver a transferência determinada pelos regulamentos europeus de 30% da carga rodoviária.

E nestas circunstâncias, quem é que vai investir em Portugal se precisar de importar/exportar para a UE? Seria extremamente díficil captar grandes investimentos industriais para Portugal, com a excepção de alguns que pudessem ser competitivos apenas com a via marítima. Note-se que o investimento industrial é indispensável para criar e manter empregos mais bem pagos, além de também gerar empregos bem pagos no sector dos serviços. Além disso se se quiser aumentar a produtividade da economia portuguesa é fundamental dar condições de internacionalização às nossas empresas, aumentando substancialmente o valor das importações e exportações relativamente ao PIB. A situação de isolamento face à EU, que a ausência da bitola europeia em Portugal originaria, conduziria ao emprobrecimento de Portugal que ficaria sem a capacidade de evitar estar na cauda da UE em termos de riqueza produzida e nível de vida, antes pelo contrário acentuaria esta tendência.

Temos assim de pensar se vale a pena poupar nos custos da bitola europeia face a esta alternativa de exclusividade da bitola ibérica. Parece claro que não, mesmo numa comparação meramente qualitativa.

 

 

REFERÊNCIAS

[1] documento dos fabricantes espanhóis de eixos variáveis para mercadorias
https://www.azvi.es/wp-content/uploads/Ponencia-Eje-OGI.pdf

[2] resposta da DG MOVE de 3set2020
https://manifestoferrovia.blogspot.com/2020/09/resposta-da-dg-move-em-nome-da.html

[3] estimativa da CIP em 2010 para a mudança de bitola da rede existente
http://cip.org.pt/wp-content/uploads/2017/01/Ref-18.pdf

[4] tuneis ferroviários nos Alpes
https://www.yumpu.com/xx/document/read/55608766/rail-conquers-the-alps
https://www.railwaygazette.com/more-action-needed-to-secure-alpine-freight-modal-shift/55631.article

[5] túnel Femern, Dinamarca -Alemanha
https://www.vinci-construction-projets.com/es/realisations/femern-tunnel/

[6] corredor mediterrânico
https://elcorredormediterraneo.com/estado-de-las-obras/
https://www.granadahoy.com/granada/Granada-Corredor-Mediterraneo-Almeria-trenes-mercancias- electrificacion-ancho-internacional_0_1667835045.html

[7] documento da CIP intitulado “O conceito de reindustrialização, industria 4.0 e política industrial para o século XXI. O caso português”
https://cip.org.pt/wp-content/uploads/2017/12/Conselho_Industria_Portuguesa_final-LR.pdf).





O princípio da subsidiariedade

 

De acordo com a legislação comunitária, o princípio da subsidiariedade fundamenta o cofinanciamento de infraestruturas de transportes, de telecomunicações e de energia  e suas interligações interoperáveis com as redes europeias  .



TFUE

Art.5, nº3 - Em virtude do princípio da subsidiariedade … a União intervém … na medida em que os objectivos da acção considerada não possam ser suficientemente alcançados pelos Estados-Membros … podendo …  ser mais bem alcançados ao nível da União.

Art.170, nº1  - … a União contribuirá para a criação e o desenvolvimento de redes transeuropeias nos sectores das infra-estruturas dos transportes, das telecomunicações e da energia.

Art.170, nº2 - … a acção da União terá por objectivo fomentar a interconexão e a interoperabilidade das redes nacionais, bem como o acesso a essas redes. Terá em conta, em especial, a necessidade de ligar as regiões insulares, sem litoral e periféricas às regiões centrais da União.

Art.288 do TFUE  -   O regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros.

 

Regulamento 1315/2013

Considerando 52 -  Atendendo a que os objetivos do presente regulamento … o estabelecimento e o desenvolvimento coordenados da rede transeuropeia de transportes, não podem ser suficientemente realizados pelos Estados-Membros … e ser mais bem alcançados ao nível da União, a União pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no art.5º do TFUE.


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