domingo, 30 de agosto de 2020

Porque tem o XXII governo esta política ferroviária para as ligações à Europa?

 

Vou tentar responder a uma questão de Henrique Neto, por que razão o governo insiste na sua política ferroviária exclusiva de bitola ibérica, sabendo que existe cofinanciamento comunitário (programa CEF -connecting Europe facility – regulamento 1316/2013) e que com a sua insistência está a prejudicar as exportações portuguesas?.

A discussão bitola ibérica-bitola UIC (ou europeia, ou standard) não é uma designação muito feliz. O que está em discussão é o cumprimento ou não, por Portugal, dos compromissos com a União Europeia relativamente às interligações ferroviárias de Portugal com a Europa além Pirineus, segundo todos os critérios da interoperabilidade (que para além da bitola 1435 mm incluem eletrificação 25 kV, sinalização ERTMS, comprimento de comboios de 740m, pendentes inferiores a 1,5%) expressos no plano das redes transeuropeias TEN-T (regulamento 1315/2013).

Nesta perspetiva, começo por recordar que duas figuras importantes no concurso anulado Poceirão-Caia da linha de tráfego misto (1200 milhões de euros, alta velocidade e mercadorias), Carlos Fernandes como RAVE e Sérgio Monteiro como organizador do plano de financiamento, se tornaram posteriormente acérrimos defensores da anulação do concurso no âmbito dos cortes além da Troika e, provavelmente, para não desvalorizar a TAP no desejado processo de privatização dado o peso das ligações Lisboa-Madrid e Lisboa-Porto.

No caso de Carlos Fernandes, atual vice presidente da IP, é o principal defensor da política do governo, batendo-se corajosamente na praça pública pela sua dama.

As intervenções públicas do presidente da IP António Laranjo, por outro lado, insistem na correção da politica de bitola ibérica única, pretextando que já se gastaram ou comprometeram 1600 milhões de euros na modernização da rede ferroviária existente (ressalva para a linha nova Évora-Elvas, em via única e com travessas bivalentes, aliás considerado um “by-pass” ao percurso por Coruche, Abrantes e Torre das Vargens) e que têm sido aplicados fundos comunitários segundo os corredores da rede TEN-T (curiosamente sem cumprir os padrões de interoperabilidade definidos pela UE).

As declarações do senhor ministro das infraestruturas (estou farto de ouvir falar da bitola, a bitola europeia é uma obsessão e um fetiche) e do próprio senhor primeiro ministro confirmam a firmeza de convicções na bitola ibérica única e no cumprimento das redes TEN-T sem recurso à bitola UIC.

Conhecida a firmeza das convicções do senhor primeiro ministro, quer sejam ou não compatíveis com a realidade,  e a sua segurança em como tem sempre razão, subsistem no entanto duvidas depois  da entrevista ao Jornal de Negócios de fevereiro de 2020, em que declarou que neste quadro comunitário, 2021-2027 nada haverá para a alta velocidade ferroviária (o que não parece compatível com a disponibilidade dos fundos CEF se houver projeto e análise de custos benefícios) e que provavelmente haverá no quadro 2027-2033. Por isso, admite que até lá se possa debater um novo traçado, mas “quando houver condições políticas” para tal. Isto é, por um lado quer (quando houver condições politicas!) e por outro não quer (por não haver condições políticas? Pergunte aos partidos).

Este é o tipo de argumentação que um pobre técnico ou um empresário, preocupados com o seu planeamento,  tem dificuldade em saber o que deve fazer no dia seguinte, ao sentar-se à mesa de trabalho e começar a trabalhar nas interligações ferroviárias.

Temos de debater o assunto, com ou sem condições politicas (o PNI2030? o parecer do CSOP? o plano Costa Silva? O pacto ecológico da EU? O plano de recuperação pós Covid da UE e nacional? Um decreto da AR que o governo não queira cumprir?)

Temos de debater um traçado? Mas ele já está definido no plano das redes TEN-T…

Para agravar a questão, é normal um prazo de 10 anos entre uma decisão e uma colocação em serviço duma linha ferroviária, já estamos no fim de 2020, e o objetivo das redes transeuropeias era 2030. Além de que, de acordo com o regulamento 1315/2013  o ano de 2023 vai ser o ano de revisão da calendarização.

E sabemos o que pode acontecer. O senhor primeiro ministro manterá a delegação que cometeu aos técnicos da IP para serem eles a definir o que fazer. Essa delegação foi formalmente acordada com a própria CE atribuindo-se a gestão e o planeamento das interligações ferroviárias aos chamados agrupamentos europeus de interesse económico, os AEIE: para os passageiros, AEIE-AVEP alta velocidade Espanha-Portugal; para as mercadorias, AEIE-RFC4 rail freight corrido nº4 ou corredor atlantico.

1 – Comodidade do governo e inércia da IP e investimento elevado - Estes agrupamentos são constituídos por representantes da IP, ADIF, SNCF e DB e deveriam garantir o planeamento exequível das 3 ligações interoperáveis da rede TEN-T em Portugal até 2030 (Sines-Leixões, Lisboa-Badajoz, Aveiro-Salamanca; cerca de 1000km, custo total entre 15000 e 20000 milhões de euros, menos do dobro do previsto compromisso da TAP com 70 novos aviões, além da viabilidade  de apoio financeiro e técnico da UE). O que não garantiram.

A IP, por eventual inércia dos seus dirigentes e canalização das verbas para a rede existente.

A ADIF pela canalização das verbas existentes para regiões de maior poder reivindicativo, caso do “Y” basco, do corredor mediterrânico, das ligações interoperáveis à Galiza, Astúrias ou Valladolid-plataforma logística de Vitoria, dotada de bitola ibérica e, a partir de 2023, de bitola UIC.

A SNCF com a sua repetida oposição a tudo o que seja tráfego internacional sobreposto ao tráfego local, o que motiva, em clara infração às regras comunitárias, o sucessivo adiamento da nova ligação Bordeus-Hendaye, apesar das cimeiras franco-luso-espanholas com muitas promessas.

A DB porque desde que viu “fugir” o porto da Cova do Vapor-Bugio, que dotaria Lisboa de uma infraestrutura comparável ao novo porto de Roterdão (isto é, livre do tráfego fluvial) só investe em Portugal em camionagem.

São estes agrupamentos que definem a política ferroviária, validada pelo governo na forma como vemos, não são os cidadãos nem os técnicos, nem os empresários, nem os exportadores que não têm ao seu alcance mecanismos participativos eficientes. Isto é uma amostra simples de uma falha do sistema democrático, como já observado por muitos. Dito de outro modo, o governo insiste na sua politica ferroviária por simples insuficiência do regime democrático, com a cómoda desculpa do plano ser muito caro.

Em resumo, uma das razões desta politica é a comodidade do governo em delegá-la acriticamente e a inércia simples da IP.

2 – Inexistencia de dois orçamentos independentes -  perante o estado calamitoso da rede ferroviária existente e a necessidade de construção de uma rede independente em bitola UIC o indicado seria a existência de dois orçamentos completamente separados, de modo que fosse possível a ação em ambos os campos. Essa é a estrutura da ADIF para a rede convencional, e da ADIF Alta Velocidade para a nova rede. A existência de programas comunitários de apoio financeiro e técnico (CEF) fundamenta esta proposta.

3 – desvalorização sistemática do projeto das redes TEN-T e dos críticos da politica do governo -  Provavelmente apoiados na forma como o senhor ministro das infraestruturas se refere às criticas, encontramos no debate público expressões como falsa questão, mito, cegueira, discussão irracional, perda de tempo, até à classificação dos críticos como treinadores de bancada. É muito curiosa a mudança de posição do prof Costa Silva, depois de na versão inicial do seu plano defender as ligações interoperáveis à Europa, vir dizer que, não sendo especialista, os técnicos o tinham esclarecido que a tecnologia tinha evoluído muito e agora estavam disponíveis aparelhos que permitiam a manutenção da bitola ibérica. Julga-se que se referia aos eixos variáveis para mercadorias (para passageiros é uma solução já clássica, embora de fabricantes espanhois) recentemente homologados de fabrico Azvi-Ogi-Tria e de patente ADIF (ver adiante).

Os defensores da bitola ibérica única argumentam também que Espanha não tem planeada nenhuma colocação em serviço de uma linha em bitola UIC. Trata-se da conhecida técnica de apresentar apenas parte de um problema. A afirmação é verdadeira se se acrescentar “de ligação a Portugal” (recordo a infeliz expressão do secretário de Estado das infraestruturas do XXI governo – “Portugal terá a bitola UIC quando Espanha o decidir”). Esquecem assim o objetivo de Vitoria-Irun para 2023, Valldolid-Burgos em 2023, parte do corredor mediterrânico em 2026 e as ligações a Vigo e a Gijon e o lamentável que é não haver data para a ligação a Madrid (o antigo ministro espanhol La Serna dizia que não estava a fazer uma linha Madrid-Badajoz, mas sim Madrid-Lisboa.

Independentemente da discussão técnica, é importante destacar que esta desvalorização é também a desvalorização do plano europeu das redes transeuropeias TEN-T  expresso claramente no White Paper de 2011, nos regulamentos 1315/2013 e 1316/2013 e nos artigos 170 a 172 do tratado de funcionamento TFUE, o que, só por si, justificaria um processo de infração pelo Estado português. Igualmente é contrariada a disposição europeia para o pacto ecológico (“green deal”) da descarbonização.

É ainda ignorada a repetida reprovação pela própria Comissão Europeia e do Tribunal de Contas Europeu (ECA) desta politica ferroviária e descoordenação com os governos espanhol e francês.

4 – certificação “forçada” da bitola ibérica como interoperável (porque incompatível com as especificações definidas no regulamento 1315, embora justificável como definição de especificações para o material circulante de outros países que tenha de operar em Portugal) através dos organismos de normalização, através de :

4.1 – dispensa de construção de linha nova segundo todas as especificações da interoperabilidade europeia. A desvalorização do tempo de transbordo de mercadorias em contentor e os requisitos administrativos para as circulações dos dois comboios em Irun é um dos principais argumentos da IP, que atribui 2 horas para o efeito e cita o sucesso da ligação China-Duisburg. No entanto, a análise da VTM (Sena da Silva/Linkedin) sobre as dificuldades do comboio da DB Schenker em 2013 refere que a viagem Portugal-Alemanha (2700 km) fazia-se em 3 dias com 1 transbordo, o que compara com os 10.300 km e 16 dias de China-Duisburg com 2 transbordos (se contentores, senão mudança de bogies). Na verdade os franceses dizerem que só dão canais Hendaye-Bordeus em 2032 é contra as regras da UE e deve ser denunciado. Sobre a "facilidade" do transbordo ver na pág.41 do relatório de dez2014 do corredor atlantico-core network-relatorio final, onde se estimam 6 horas só para o transbordo e mais 1h30 para as formalidades de obtenção de canal

4.2 – consideração de que é suficiente eliminar pendentes e facultar cruzamentos para comboios de 750m para se considerar uma linha eletrificada a 25 kV como interoperável (este argumento é curioso por se desconhecer a existencia de defensores do aproveitamento integral do traçado de estradas do século XIX para o traçado de novas auto-estradas)

4.3 – utilização de travessas polivalentes de 4 fixações (funcionamento com os carris na posição da bitola ibérica com possibilidade de mudança posterior para a posição com bitola UIC). Este procedimento é sistemático em Espanha por imposição legal quando não é viável  inaugurar toda a linha em bitola UIC. Deve notar-se que esta solução tem razoabilidade se se tratar de uma linha em via dupla. Como o rendimento da mudança dos carris para a posição UIC é da ordem de 1km/dia, no caso de uma via simples isso corresponderia à sua imobilização, pelo menos parcial, durante o processo de transição. É o caso do troço Évora-Elvas

Outra hipótese em Espanha é a utilização de travessas de 3 fixações, em que é possível a utilização de comboios com bitola ibérica e com bitola UIC. No entanto, existem limitações de velocidade e requisitos para correção da excentricidade. Tanto este e outro tipo de travessas como os eixos variáveis podem considera-se soluções pontuais e transitória para ligação de troços das redes ibérica e UIC, enquanto decorre o processo de construção de toda a linha UIC (como aliás se pode ler no próprio folheto de apresentação pelos fabricantes dos eixos variáveis de mercadorias). Estas soluções são aplicadas principalmente no corredor mediterrânico, com o aproveitamento de alguns troços do traçado existente ou com utilização de novos troços inicialmente com bitola ibérica e posterior mudança para UIC. De referir como ilustração das soluções para continuar utilizando a linha existente em ibérica enquanto não existirem condições para o serviço exclusivo em UIC, o exemplo do túnel de Pajares da ligação às Asturias. Sendo duplo, uma das vias será colocado em serviço com bitola ibérica, e o outro com bitola UIC.

4.4 – crença na usabilidade económica dos eixos variáveis para mercadorias – é duvidosa no caso dos eixos variáveis para mercadorias de patente ADIF por se tratar de uma tecnologia complexa que implica maior peso com a subsequente redução da carga útil, um sistema de monitorização da sua operacionalidade mais complexo, requisitos de assistencia técnica longe do fabricante que minimizem o risco de imobilização do comboio, conflito com a lei da concorrência enquanto fator de rejeição de compra de material circulante com estas caraterísticas por operadores alemães ou franceses.

5 – aproveitamento da janela de oportunidades do material sobrante espanhol para a rede convencional de bitola ibérica -  dada a manutenção de uma rede convencional em Espanha e Portugal de bitola ibérica previsivelmente por várias décadas e a existência de material circulante sobrante espanhol, é de facto explorável esta janela de oportunidade tanto mais que nos dois países, para compensar anos de desinvestimento, se estão a modernizar e eletrificar alguns troços (Badajoz-Puertollano, por exemplo). Não admira assim que o principal operador de mercadorias em Portugal e já significativo em Espanha, a Medway, do grupo MSC, insista, para alem de esperar do governo obras como a eliminação de pendentes e os cruzamentos de 750m, defina como objetivos o serviço das plataformas fronteiriças de Vigo, Salamanca e Badajoz e, em Espanha, a de Vitoria, ligada a Irun por bitola UIC a partir de 2023, ignorando-se os termos de negociação de nova taxa de uso das infraestruturas.

Nesta circunstancias, poderá considerar-se esta janela de oportunidades como uma proteção do governo português aos atuais operadores (Medway e Takargo, do grupo Mota-Engil) como o senhor ministro das infraestruturas do XXI governo chegou a afirmar.

Igualmente se poderá dizer que, sendo a rede de bitola ibérica um obstáculo às exportações e importações além Pirineus, está o governo português a privilegiar as relações com Espanha e o modo marítimo como ligação à Europa.

6 – desvalorização do valor das mercadorias exportadas para França e Alemanha comparativamente com Espanha – apesar da pandemia, o primeiro semestre de 2020 confirmou os valores de 2019 de superação das mercadorias exportadas por todos os modos para França e Alemanha relativamente a Espanha. No primeiro semestre de 2020 o valor das exportações foi de cerca de 7000 milhões de euros para França e Alemanha, ligeiramente superior ao exportado para Espanha. Isto é especialmente significativo na exportação de componentes para automóvel e é um caminho que não deve ser desprezado para a saúde da economia portuguesa

Poderá portanto dizer-se que o governo português, com a sua politica ferroviária, está a proteger as relações com Espanha em detrimento das relações além Pirineus..

7 – desvalorização do grave problema da reconversão das empresas de camionagem que asseguram a maior parte do tráfego de mercadorias para a Europa , sendo que o regulamento 1316/2013 impõe a tranferencia até 2030 de 30% da carga para meios menos poluentes do que o rodoviário.

Parecerá assim que o governo português estará a proteger estas empresas, aparentemente em sintonia com as estruturas sindicais, receosas da entrada de operadores estrangeiros. Numa altura em que o controle da tantas empresas deixou de ser nacional, este argumento não será  muito forte, até porque os operadores estrangeiros, por força de lei, têm de respeitar os seus próprios sindicatos que dariam força aos nacionais.

Como solução para este problema, destaca-se o transporte de camiões ou reboques em vagões (naturalmente que o fabrico destes vagões teria de ser um investimento a repartir pelos operadores e pelo Estado com cofinanciamento comunitário a título excecional, como previsto no TFUE para evitar crises sociais). Esta solução é comum em Espanha (auto-pistas ferroviárias)

8 – opção pelo modo aéreo nas ligações Lisboa -Madrid  e Lisboa-Porto -  Apesar das anunciadas intervenções na linha do Norte (PNI2030, declarações do CSOP, plano Costa Silva), o facto de se privilegiar correções de traçado sob a  forma de “by-passes” (4 perfazendo cerca de metade do comprimento da linha) em detrimento da construção de uma linha nova com as caraterísticas do plano das redes TEN-T, nada indica na politica do governo de deixar de privilegiar o modo a~ereo nas ligações a Madrid e ao Porto. Isto contraria mais uma vez frontalmente as orientações europeias de eliminar, por mais poluentes, as ligações aéreas com menos de 800 km.

Poderá então dizer-se que a politica do governo protege as companhias aéreas, conhecidas pela isenção de impostos petrolíferos e de taxas de carbono e pela sua poluição.

sábado, 15 de agosto de 2020

Carta para a comissária europeia de Transportes de 30 de julho de 2020

 Dear Commissar for Transportation

Adina Valean
Lisbon, 30 July 2020

Please find attached a letter subscribed by 29 portuguese citizens of
several areas, namely engineers, business leaders, and mayors of major
towns, relatively to the gauge of the rail infrastructure of the TEN-T
in Portugal and the risk of isolation of the Portuguese economy.
There is an ongoing debate in Portugal about the plan the government
needs to present to the EU Commission in the framework of the recovery
plan and use of EU Funds on the post Covid 19 period. This includes
investment on new rail infrastructures, in which the issue of this
letter is crucial to distinguish waste from investment.
We ask for your attention to the contents of this letter and for an
answer.
With best regards


.................................................................................................................................................................


Exma. Senhora

Comissária dos Transportes

Adina Valean        

Email: cab-valean-contact@ec.europa.eu

 

Address: Rue de la Loi / Wetstraat 200

1049 Brussels

Belgium

                                                                          

Lisboa, 30 de Julho de 2020

 

Assunto: Risco de isolamento da economia portuguesa - pedido de esclarecimento sobre a componente ferroviária das TEN-T em Portugal

 

Tomámos conhecimento da apresentação que fez no Parlamento Europeu, no dia 23 de Junho, sobre o ponto de situação da consulta pública do novo TEN-T.

Saudamos, em particular, dois aspectos do seu discurso:

Primeiro, a satisfação com que registou a participação de 600 organizações e cidadãos, e a valorização da informação recebida por essa via, o que nos encorajou agora a escrever-lhe esta carta.

Segundo, o alerta que deixou para o perigo de as regiões periféricas ficarem de fora desta reforma, o que implicaria o agravamento de desequilíbrios económicos e sociais no interior do espaço europeu.

Como cidadãos, alguns de nós com responsabilidades institucionais nas regiões e nas mais representativas associações empresariais portuguesas, queremos alertá-la para o risco de isso acontecer em Portugal, país periférico que tende a tornar-se uma ilha ferroviária na Europa, devido ao sistemático atraso em adoptar a bitola europeia (1435 mm) nas suas linhas internacionais. Esta situação privaria Portugal de vias terrestres competitivas (para o que têm de ser interoperáveis em toda a sua extensão) para o transporte de mercadorias de e para a maior parte da União Europeia. Além disso, impediria a concorrência na operação ferroviária internacional, relegando Portugal para uma situação de monopólio ferroviário, como defende o Governo português, que já declarou que encara a diferença de bitola para o resto da União Europeia como uma protecção natural contra a concorrência.

Esperamos, por isso, que o novo TEN-T seja aproveitado para impulsionar uma transformação na nossa infra-estrutura ferroviária no sentido da sua integração plena nas redes europeias, sob pena de o nosso país ser a primeira “geografia do descontentamento” e de destruição económica que descreveu com muita pertinência.

Chegaram ao nosso conhecimento informações sobre a possibilidade de a Comissão Europeia certificar, como interoperáveis no âmbito da Rede Core da União Europeia, vias férreas portuguesas, em bitola ibérica (1668 mm), em itinerários do Corredor Atlântico da Rede Core, cuja bitola não pode deixar de ser a que consta do Regulamento UE 1315/2013 (1435 mm). 

Estamos muito preocupados com essa possibilidade, que significa a manutenção do nosso isolamento ferroviário relativamente a toda a Europa, nomeadamente ao TEN-T.

Julgamos, antes de mais, que essa certificação iria contra os objectivos e afectaria a credibilidade do novo TEN-T. Em lugar de um instrumento de modernização, reforço da mobilidade e promoção da coesão económica, essa certificação iria, na prática, converter o TEN-T num instrumento de justificação burocrática de um erro histórico: contribuiria para a não abertura à Europa do sistema ferroviário português, agravando assim as condições logísticas dum país geograficamente periférico em relação ao centro da Europa, pelo que representaria um dano, de consequências gravíssimas, para a economia portuguesa.

Gostaríamos de fundamentar esta pronúncia de acordo com dois critérios que apresentamos neste documento, no anexo “Fundamentação”, constituído por 2 capítulos:

Primeiro, o técnico-económico, capítulo onde a documentaremos sobre a preocupação de grande parte do sector empresarial português com esta questão.

Segundo, o jurídico, nos termos do qual essa certificação nos parece manifestamente ilegal face à legislação europeia.

Pelo exposto, gostaríamos que nos informasse qual a posição que a Comissão Europeia assumirá na questão da eventual certificação como interoperáveis de linhas da Rede Core em bitola ibérica.

Com os melhores cumprimentos

Os subscritores

 

 

Luis Mira Amaral, ex Ministro da Indústria (1985-1995)

Mário Lopes – Engº civil, Prof. do Instituto Superior Técnico (IST), Ex Presidente da Associação para o Desenvolvimento de Sistemas Integrados de Transportes (ADFERSIT) 

Arménio Matias - Engº electrotécnico, fundador e Ex Presidente da Associação para o Desenvolvimento do Transporte Ferroviário (ADFER), Ex Administrador da CP (Comboios de Portugal, https://www.cp.pt/institucional/pt/empresa)

Fernando Santos e Silva, Engº electrotécnico, Ex responsável no Metropolitano de Lisboa pelos processos de homologação dos novos troços 

Joaquim Polido, Ex Presidente da Fernave (http://www.fernave.pt/), Ex Presidente da ADFERSIT, Ex quadro superior da CP

Luis Cabral da Silva, Engº electrotécnico, gestor, Ex- quadro superior da REFER (Rede Ferroviária Nacional, actual IP, https://www.infraestruturasdeportugal.pt/), especialista em Transportes e Vias de Comunicação

Acúrcio Santos, Engº electrotécnico, Ex-Director de material circulante e Ex Director dos Serviços Regionais da CP

Alberto Grossinho, Engº mecânico. Principais funcões desempenhadas na REFER (Rede Ferroviária Nacional), entre 1970 e 2011: Director Geral Adjunto para a Segurança, Director de Circulação, e elemento de ligação ao IMTT (Instituto da Mobilidade e Transportes Terrestres) para as questões de interoperabilidade.

Mário Ribeiro, Engº mecânico, Ex quadro superior da TAP no serviço de manutenção

Eugénio Menezes de Sequeira, Engº Agrónomo, Investigador Coordenador aposentado do Instituto Nacional de Investigação Agrária, Ex Presidente da Liga para a Protecção da Natureza, Membro da Comissão de Ambiente da Sociedade de Geografia de Lisboa

Fernando Mendes – Engº electrotécnico, empresário

Henrique Neto, empresário

Vitor Caldeirinha, Ex Presidente da Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra, Ex Presidente da Associação de Portos de Portugal e Ex Presidente da ADFERSIT

João Luis Mota Campos, Ex Secretário de Estado da Justiça (2002-2004)

José Augusto Felício, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG)

João Duque, Professor Catedrático do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG)

Carlos Sousa Oliveira, Professor Catedrático Jubilado do Instituto Superior Técnico (IST)

Rui Carrilho Gomes, Professor do Instituto Superior Técnico (IST)

António Gomes Correia, Professor Catedrático da Universidade do Minho (UM)

José António Ferreira de Barros,, empresário, Ex Presidente da AEP (Associação Empresarial de Portugal - https://www.aeportugal.pt/)

 

Luis Miguel Ribeiro,  Presidente da AEP (Associação Empresarial de Portugal, https://www.aeportugal.pt/)

Fernando Castro, Presidente da AIDA, (Associação Industrial do Distrito de Aveiro, http://aida.pt/)

José Couto, Presidente da AFIA (Associação dos Fabricantes para a Indústria Automóvel, https://afia.pt/) e do CEC (Conselho Empresarial do Centro, http://www.cec.org.pt/)

António Miguel Batista Poças da Rosa, Presidente da NERLEI (Associação Empresarial da Região de Leiria, https://www.nerlei.pt/)

Rogério Hilário, Vice-Presidente do CEC (Conselho Empresarial do Centro, http://www.cec.org.pt/)

 

Tomás Moreira (Ex Presidente da AFIA, Associação dos Fabricantes para a Indústria Automóvel)

António Almeida Henriques, Presidente da Câmara Municipal de Viseu (http://www.cm-viseu.pt/)

José Ribau Esteves, Presiente da Câmara Municipal de Aveiro (https://www.cm-aveiro.pt/)

Ricardo Rio, Presidente da Câmara Municipal de Braga (https://www.cm-braga.pt/pt)

 

PS Juntam-se num documento separado, intitulado “Lista de emails” os emails dos subscritores desta carta, para que os Serviços da Comissão possam verificar a veracidade da lista de subscritores se o desejarem. Caso os Serviços da Comissão façam esta verificação, pedimos que o façam individualmente, para manter a privacidade dos subscritores no que diz respeito aos respectivos endereços electrónicos.

 


 

Anexo

Fundamentação

1 – Fundamentação técnico-económica

-  Face aos constrangimentos ambientais e energéticos que a Humanidade enfrenta, a União Europeia promove políticas para garantir a sustentabilidade do sistema de transportes na Europa com base em 2 tipos de políticas: i) desenvolvimento de veículos ambiental e energeticamente mais eficientes em todos os modos de transportes, e ii) transferência de tráfego dos modos ambiental e energeticamente menos eficientes e menos sustentáveis, para os mais sustentáveis e eficientes. Este objectivo está quantificado pela UE: até 2030 transferir 30% e até 2050 transferir 50% do tráfego de mercadorias nas médias e longas distâncias (>300km) para os modos ferroviário e marítimo (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52011DC0144&from=PT, ponto 2.5 (3)).

-  Cerca de 70% do comércio externo de Portugal faz-se com os seus parceiros da UE. Deste, cerca de 80% em valor faz-se por rodovia. O transporte ferroviário internacional de mercadorias de e para Portugal faz-se exclusivamente com Espanha e é uma parte muito diminuta das trocas comerciais terrestres (Espanha possui uma rede ferroviária convencional em bitola ibérica, embora planeie a sua migração para a bitola europeia). Ou seja, actualmente Portugal depende muito fortemente da rodovia para as suas ligações comerciais à UE, e estas são fundamentais para o desenvolvimento económico. Como este sistema é insustentável face aos constrangimentos energéticos e ambientais e às políticas europeias de transporte, sem uma alternativa competitiva à rodovia Portugal ficará isolado dos mercados da UE, e dessa forma condenado ao empobrecimento.

-  Muitas empresas e Associações empresariais portuguesas têm consciência do problema (http://cip.org.pt/wp-content/uploads/2018/03/Conselho_Industria_Portuguesa_final-LR.pdf., capítulo VI). Algumas como a AFIA (Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel), antevendo esse isolamento têm recomendado às empresas suas associadas que se preparem para usar as plataformas logísticas espanholas de Vigo, Salamanca e Badajoz, que se irão ligar à rede ferroviária de bitola europeia, para exportar para o centro da Europa. (https://1drv.ms/b/s!Al9_rthOlbweun2b8KdQXWfHJnHR?e=wgzoGu), num processo de minimização de danos mas com inevitáveis custos de contexto acrescidos em relação a outras empresas europeias suas concorrentes.

-  A ferrovia europeia é pouco competitiva no transporte internacional de mercadorias e detém baixas quotas de mercado. Uma das principais causas desta situação é o facto de ser gerida essencialmente a nível nacional, por vezes com a preocupação de evitar a concorrência de outros países da U.E., utilizando para isso obstáculos técnicos à circulação de comboios e/ou criando dificuldades na atribuição de canais horários a comboios de outros países, naquilo que pode ser considerado uma restrição de efeito equivalente a restrição de acesso aos mercados nacionais.

-  As diferenças de bitola são o mais forte obstáculo técnico à circulação de comboios. Os transbordos, o principal meio de resolver este problema, além de fazerem perder tempo e dinheiro, tornam a gestão do sistema ferroviário ineficaz devido à necessidade de compatibilização de canais horários de comboios diferentes em redes com bitolas diferentes, para minimizar essas perdas de tempo. Por isso, o tráfego ferroviário internacional de mercadorias entre Portugal e a Europa além Pirinéus é de zero toneladas anuais. Além disso, em grandes quantidades, necessárias à transferência modal em larga escala como é objectivo das políticas europeias, a ineficácia de gestão inviabiliza o funcionamento do sistema com um mínimo de competitividade.

-  A utilização de eixos de largura variável em vagões de mercadorias também não é uma solução competitiva para transporte de mercadorias, além de serem material não standard, o que traz numerosos outros inconvenientes. Aliás os próprios fabricantes espanhóis desses eixos referem que estes eixos não servem para tornar desnecessária a migração da bitola em Espanha mas servem para agilizar o transporte durante o período de transição em que coexistirão em Espanha a bitola ibérica (1668mm) e a bitola UIC (1435mm) (https://www.civil.ist.utl.pt/~mlopes/conteudos/Transportes/Ref%20120%20-%20EIXOS%20VARIAVEIS%20para%20MERCADORIAS%20Ponencia-Eje-OGI.pdf, página 2)

-  A via marítima pode contribuir para resolver uma parte do problema do comércio de Portugal com a UE mas não a maior parte, pois é menos competitiva que as vias terrestres no comércio Portugal-UE para muitos sectores de actividade e origens/destinos no centro da Europa (Anexo 2 do documento disponível em http://cip.org.pt/wp-content/uploads/2018/03/Conselho_Industria_Portuguesa_final-LR.pdf.,)

-  Está explícito em documentos da União Europeia (White paper – ‘European transport policy for 2010: time to decide, págs 29 e 30, disponível em https://ec.europa.eu/transport/sites/transport/files/themes/strategies/doc/2001_white_paper/lb_com_2001_0370_en.pdf ) que o transporte ferroviário só pode ser competitivo se não existirem obstáculos técnicos à circulação de comboios, o que é inteiramente correcto. Por esta razão a Comissão Europeia tem definido políticas para a criação de um conjunto de Corredores de grande tráfego, a Rede Core da UE, que devem ser servidos por vias férreas interoperáveis, isto é, sem obstáculos técnicos à livre circulação de comboios.

-  Neste contexto a competitividade futura da economia portuguesa depende da criação das Linhas da Rede Core da UE, incluindo obviamente os troços em território português.

-  A possível certificação como interoperável de linhas de bitola ibérica nos itinerários da Rede Core situados em Portugal estimula a Governo português a adiar indefinidamente os investimentos em linhas de bitola europeia, pois continua a ter acesso aos Fundos da UE para a Rede Core. Com a agravante de em Portugal, devido à sua bitola ibérica, os comboios europeus estarem impossibilitados de nos trazer e de levarem as mercadorias de que necessitamos e que exportamos, ficando reféns de um monopólio que os actuais operadores não querem perder e, consequentemente, não beneficiando da livre concorrência internacional.

-  A questão da continuidade em Espanha (não teria sentido construir os troços portugueses das linhas internacionais de bitola europeia se não tivessem continuidade em Espanha) deve ser resolvida com acordos prévios tri-partidos Portugal-Espanha-UE sobre financiamento, características técnicas e construção simultânea das linhas internacionais em ambos os países.

-  Alguns responsáveis portugueses tentam desvalorizar a questão, dizendo que depois da Espanha chegar com a ferrovia de bitola europeia às fronteiras portuguesas, Portugal procederá à mudança da bitola na rede portuguesa de um dia para o outro. Basta analisar a questão, numa perspectiva técnico-económica, para se perceber que esta afirmação é totalmente irrealista. Veja-se o caso da Espanha, que sempre teve a bitola europeia do lado francês nas suas fronteiras a norte, começou a construir a rede de bitola europeia em 1988 e, apesar disso, o processo para colocar a bitola europeia em toda a Espanha ainda vai demorar. Pior do que isso, o anterior Ministro das Infraestruturas de Portugal, ao explicar a política do Governo para a ferrovia, declarou que as diferenças de bitola para o resto da Europa são uma protecção natural contra a concorrência externa (https://www.tsf.pt/economia/para-que-serve-parceria-da-cp-com-renfe-evitar-roubo-da-operacao-portuguesa-10038758.html e 3º vídeo do site https://www.dinheirovivo.pt/entrevistas/capacidade-de-transporte-aereo-em-lisboa-vai-duplicar/), pois sabe que dificilmente alguma empresa da Europa além-Pirinéus comprará vagões de mercadorias não standard apenas para fazer os trajectos na rede portuguesa.

-  É também relevante referir que a Comissão Europeia já chamou a atenção para a necessidade de Portugal trabalhar no sentido da transição para a bitola UIC na rede ferroviária portuguesa (https://ec.europa.eu/transport/sites/transport/files/2019-transport-in-the-eu-current-trends-and-issues.pdf, página 128, e https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/2020-european_semester_country-report-portugal_pt.pdf, página 66), embora sem exercer pressão ou estímulos nesse sentido.

-  Acresce que o isolamento ferroviário de Portugal, e eventualmente de algumas regiões de Espanha ainda sem linhas de bitola europeia aptas para tráfego competitivo de mercadorias, estimularia o uso da rodovia para transporte de mercadorias nas médias e longas distâncias, o que iria contra a competitividade da indústria e as metas de redução de emissões de gases de efeito de estufa até 2030 e neutralidade climática até 2050 fixadas pela Comissão Europeia (https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:b828d165-1c22-11ea-8c1f-01aa75ed71a1.0008.02/DOC_1&format=PDF, páginas 5 e 6), preocupação que já chegou ao Tribunal de Contas da UE dados os atrasos na construção e ineficiências da Rede Core (https://www.eca.europa.eu/Lists/ECADocuments/INSR18_19/INSR_HIGH_SPEED_RAIL_PT.pdf, 2nd paragraph)

 

2 – Fundamentação jurídica

-  Recordamos a definição de interoperabilidade na Directiva 2008/57 e no nº2 do art.º 2 da Directiva 2016/797 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/pt/TXT/?uri=CELEX:32016L0797): “a interoperabilidade permite a circulação segura sem interrupções”. Recordamos também o Regulamento 1315/2013 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX:32013R1315), que no Capítulo III, “Rede Principal” no artº 39 “Requisitos da infra-estrutura” estabelece no nº2 o seguinte:

” A infra-estrutura da rede principal deve cumprir os seguintes requisitos:

a)    No que se refere à infraestrutura de transporte ferroviário:

i)     plena electrificação das vias férreas e, desde que necessário para operações com comboios eléctricos, dos ramais,

ii)    linhas de transporte de mercadorias da rede principal conforme indicado no Anexo I: no mínimo, 22,5 t de carga por eixo, 100 km/h de velocidade e a possibilidade de circulação de comboios com 740 m de comprimento,

iii) plena implantação do ERTMS,

iv)   bitola nominal da via para as novas linhas ferroviárias: 1 435 mm, excepto nos casos em que a nova linha seja uma extensão de uma rede cuja bitola seja diferente e separada da das principais linhas da União.

-  Decorre do ponto anterior, que como os troços da Rede Core em território português não são separados das principais linhas da União (a própria Rede Core de que fazem parte), têm de ser necessariamente em bitola de 1435mm.

-  O gestor da infra-estrutura ferroviária portuguesa (IP) informou recentemente que o troço Évora-Caia da Linha Lisboa-Madrid do Corredor Atlântico da Rede Core, actualmente em construção e que será dotado de uma via única em bitola ibérica com travessas de dupla fixação, será certificado como interoperável pela Associação Portuguesa para a Normalização e Certificação Ferroviária (APNCF), num processo que afirma ser reconhecido pela Comissão Europeia (notícias em https://webrails.tv/tv/?p=43721 e http://webrails.tv/tv/?p=43699). Realçamos que uma linha em bitola ibérica, seja lá qual for o tipo de travessas, não é, na realidade, interoperável com as restantes linhas da Rede Core, porque comboios de eixos fixos não poderão transitar dessa linha para as restantes linhas da Rede Core.

-  Contactámos por email a APNCF para esclarecer a questão da certificação. Recebemos resposta do Secretário-Geral da APNCF, Engº Eduardo Osvaldo Louro da Silva Correia, por email no dia 9 de Junho de 2020. Transcrevemos de seguida as partes relevantes da resposta:

“A certificação da interoperabilidade decorre ao abrigo da Directiva 2008/57/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, relativo à interoperabilidade do sistema ferroviário na Comunidade, transposta pelo Decreto-Lei n.º 27/2011, de 17 de Fevereiro, e pelas seguintes alterações:

………..

Ora, a Especificação Técnica de Interoperabilidade para o subsistema «infra-estrutura» (Regulamento (UE) N.º 1299/2014, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014R1299&from=PT) estabelece no n.º 5 do Artigo 2.º que a ETI aplica-se às linhas com as seguintes bitolas nominais: 1435 mm, 1520 mm, 1524 mm, 1600 mm e 1668 mm, sem especificar o tipo de travessa, logo é aplicável à bitola ibérica independentemente da travessa utilizada, permitindo consequentemente a certificação da interoperabilidade ao abrigo da regulamentação europeia, estando assegurado o reconhecimento dessa certificação e consequentemente o financiamento europeu das linhas da rede Core em Portugal.

………..

Na verdade, os termos do Regulamento (UE) N.º 1299/2014, que revogou as Decisões 2008/217/CE e 2011/275/EU, (……), pois tendo passado a prever expressamente a bitola de 1668 mm, o financiamento passou a estar assegurado, o que não era líquido nos termos regulamentares anteriores.” [fim de citação]

 

-  Note-se que o Regulamento (UE) N.º 1299/2014 refere no art.º 11 “Revogação” que  “As Decisões 2008/217/CE e 2011/275/UE da Comissão são revogadas, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2015”, ou seja, o Regulamento 1315/2013 não foi revogado, Desta forma, no nosso entender e em relação à Rede Principal [1] ou rede Core, cujos requisitos estão previstos no artigo 39º, já citado, do Regulamento 1315/2013, mantém-se inalterada a regra prevista no artigo 39º de que « iv) bitola nominal da via para as novas linhas ferroviárias: 1 435 mm, excepto nos casos em que a nova linha seja uma extensão de uma rede cuja bitola seja diferente e separada da das principais linhas da União.».

-  A manutenção da situação excepcional da actual rede portuguesa tem na verdade um “racional” que está em contradição directa com os propósitos da política da União nesta e noutras matérias: como já se referiu, em entrevista à estação de rádio TSF em 20 de Outubro de 2018, o então Ministro das Infraestruturas e agora deputado europeu Pedro Marques, afirmava, no contexto do livre acesso às redes de transporte ferroviário de passageiros na União Europeia, decidido em 2013, que será concretizado no início do próximo ano, que parte da concorrência, no entanto, é afastada à partida por haver uma "protecção natural": a bitola ibérica. Acresce, como já referido, que para além da profunda contradição desta posição anticoncorrencial, que visa estabelecer uma restrição de efeitos equivalentes a uma proibição da concorrência no mercado português, decorrem da politica resultante desta posição consequências graves para os exportadores portugueses (e europeus no seu conjunto, quando exportadores para Portugal) que, para que os operadores ferroviários locais sejam protegidos no seu mercado natural, se vêem prejudicados na capacidade de fazer circular as mercadorias sem entraves no espaço económico europeu.

-  É assim sustentável que a certificação como interoperáveis no âmbito da Rede Core da União Europeia das vias férreas portuguesas, em bitola ibérica (1668 mm), em itinerários do Corredor Atlântico da Rede Core, viola os princípios contidos no artigo 170º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A12012E%2FTXT) e, mais concretamente a proibição de auxílios que afectem as trocas comerciais entre os Estados-membros contida no artigo 107º, 1, do TFUE  [2], na medida em que é muito claro que a manutenção da bitola ibérica, de acordo com as próprias declarações do Governo Português, visa proteger a CP da concorrência [3], criando uma barreira artificial de protecção do incumbente em detrimento de potenciais concorrentes.

-  Cabe à Comissão Europeia, nos termos do artigo 108º do TFUE, controlar a compatibilidade deste auxílio com o mercado interno, sendo nosso entendimento que para além do enorme prejuízo que esta forma de ajuda à CP causa à economia portuguesa, viola as regras de concorrência e livre acesso ao mercado impostas pelos Tratados.

 

 

 

 



[1] Artº 38º, 1, do Regulamento 1315/2013: A rede principal, ilustrada nos mapas contidos no Anexo I, é constituída pelas partes da rede global que têm maior importância estratégica para a consecução dos objectivos da política de desenvolvimento da rede transeuropeia de transportes, e deve reflectir a evolução da procura de tráfego e as necessidades de transporte multimodal. A rede principal deve contribuir, nomeadamente, para dar resposta à mobilidade crescente, para garantir elevados padrões de segurança e para desenvolver um sistema de transportes com baixo teor de carbono.

[2] Artigo 107º (ex-artigo 87º TCE) 1. Salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.

 

[3] Deixando aliás implícito um entendimento com a RENFE espanhola. Cfr. entrevista de 20 de Outubro de 2018, já citada.Exma. Senhora



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Dado conhecimento da carta a deputados e à comunicação social, veio a ser dada noticia através da Lusa:

https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/grupo-avisa-bruxelas-que-portugal-pode-tornar-se-ilha-ferroviaria-na-europa

Alguns argumentos contra a construção de raíz das ligações ferroviárias à Europa em bitola europeia

  ALGUNS ARGUMENTOS CONTRA A CONSTRUÇÃO DE RAÍZ DAS LIGAÇÕES FERROVIÁRIAS À EUROPA EM BITOLA EUROPEIA O PRR prevê q...