domingo, 30 de agosto de 2020

Porque tem o XXII governo esta política ferroviária para as ligações à Europa?

 

Vou tentar responder a uma questão de Henrique Neto, por que razão o governo insiste na sua política ferroviária exclusiva de bitola ibérica, sabendo que existe cofinanciamento comunitário (programa CEF -connecting Europe facility – regulamento 1316/2013) e que com a sua insistência está a prejudicar as exportações portuguesas?.

A discussão bitola ibérica-bitola UIC (ou europeia, ou standard) não é uma designação muito feliz. O que está em discussão é o cumprimento ou não, por Portugal, dos compromissos com a União Europeia relativamente às interligações ferroviárias de Portugal com a Europa além Pirineus, segundo todos os critérios da interoperabilidade (que para além da bitola 1435 mm incluem eletrificação 25 kV, sinalização ERTMS, comprimento de comboios de 740m, pendentes inferiores a 1,5%) expressos no plano das redes transeuropeias TEN-T (regulamento 1315/2013).

Nesta perspetiva, começo por recordar que duas figuras importantes no concurso anulado Poceirão-Caia da linha de tráfego misto (1200 milhões de euros, alta velocidade e mercadorias), Carlos Fernandes como RAVE e Sérgio Monteiro como organizador do plano de financiamento, se tornaram posteriormente acérrimos defensores da anulação do concurso no âmbito dos cortes além da Troika e, provavelmente, para não desvalorizar a TAP no desejado processo de privatização dado o peso das ligações Lisboa-Madrid e Lisboa-Porto.

No caso de Carlos Fernandes, atual vice presidente da IP, é o principal defensor da política do governo, batendo-se corajosamente na praça pública pela sua dama.

As intervenções públicas do presidente da IP António Laranjo, por outro lado, insistem na correção da politica de bitola ibérica única, pretextando que já se gastaram ou comprometeram 1600 milhões de euros na modernização da rede ferroviária existente (ressalva para a linha nova Évora-Elvas, em via única e com travessas bivalentes, aliás considerado um “by-pass” ao percurso por Coruche, Abrantes e Torre das Vargens) e que têm sido aplicados fundos comunitários segundo os corredores da rede TEN-T (curiosamente sem cumprir os padrões de interoperabilidade definidos pela UE).

As declarações do senhor ministro das infraestruturas (estou farto de ouvir falar da bitola, a bitola europeia é uma obsessão e um fetiche) e do próprio senhor primeiro ministro confirmam a firmeza de convicções na bitola ibérica única e no cumprimento das redes TEN-T sem recurso à bitola UIC.

Conhecida a firmeza das convicções do senhor primeiro ministro, quer sejam ou não compatíveis com a realidade,  e a sua segurança em como tem sempre razão, subsistem no entanto duvidas depois  da entrevista ao Jornal de Negócios de fevereiro de 2020, em que declarou que neste quadro comunitário, 2021-2027 nada haverá para a alta velocidade ferroviária (o que não parece compatível com a disponibilidade dos fundos CEF se houver projeto e análise de custos benefícios) e que provavelmente haverá no quadro 2027-2033. Por isso, admite que até lá se possa debater um novo traçado, mas “quando houver condições políticas” para tal. Isto é, por um lado quer (quando houver condições politicas!) e por outro não quer (por não haver condições políticas? Pergunte aos partidos).

Este é o tipo de argumentação que um pobre técnico ou um empresário, preocupados com o seu planeamento,  tem dificuldade em saber o que deve fazer no dia seguinte, ao sentar-se à mesa de trabalho e começar a trabalhar nas interligações ferroviárias.

Temos de debater o assunto, com ou sem condições politicas (o PNI2030? o parecer do CSOP? o plano Costa Silva? O pacto ecológico da EU? O plano de recuperação pós Covid da UE e nacional? Um decreto da AR que o governo não queira cumprir?)

Temos de debater um traçado? Mas ele já está definido no plano das redes TEN-T…

Para agravar a questão, é normal um prazo de 10 anos entre uma decisão e uma colocação em serviço duma linha ferroviária, já estamos no fim de 2020, e o objetivo das redes transeuropeias era 2030. Além de que, de acordo com o regulamento 1315/2013  o ano de 2023 vai ser o ano de revisão da calendarização.

E sabemos o que pode acontecer. O senhor primeiro ministro manterá a delegação que cometeu aos técnicos da IP para serem eles a definir o que fazer. Essa delegação foi formalmente acordada com a própria CE atribuindo-se a gestão e o planeamento das interligações ferroviárias aos chamados agrupamentos europeus de interesse económico, os AEIE: para os passageiros, AEIE-AVEP alta velocidade Espanha-Portugal; para as mercadorias, AEIE-RFC4 rail freight corrido nº4 ou corredor atlantico.

1 – Comodidade do governo e inércia da IP e investimento elevado - Estes agrupamentos são constituídos por representantes da IP, ADIF, SNCF e DB e deveriam garantir o planeamento exequível das 3 ligações interoperáveis da rede TEN-T em Portugal até 2030 (Sines-Leixões, Lisboa-Badajoz, Aveiro-Salamanca; cerca de 1000km, custo total entre 15000 e 20000 milhões de euros, menos do dobro do previsto compromisso da TAP com 70 novos aviões, além da viabilidade  de apoio financeiro e técnico da UE). O que não garantiram.

A IP, por eventual inércia dos seus dirigentes e canalização das verbas para a rede existente.

A ADIF pela canalização das verbas existentes para regiões de maior poder reivindicativo, caso do “Y” basco, do corredor mediterrânico, das ligações interoperáveis à Galiza, Astúrias ou Valladolid-plataforma logística de Vitoria, dotada de bitola ibérica e, a partir de 2023, de bitola UIC.

A SNCF com a sua repetida oposição a tudo o que seja tráfego internacional sobreposto ao tráfego local, o que motiva, em clara infração às regras comunitárias, o sucessivo adiamento da nova ligação Bordeus-Hendaye, apesar das cimeiras franco-luso-espanholas com muitas promessas.

A DB porque desde que viu “fugir” o porto da Cova do Vapor-Bugio, que dotaria Lisboa de uma infraestrutura comparável ao novo porto de Roterdão (isto é, livre do tráfego fluvial) só investe em Portugal em camionagem.

São estes agrupamentos que definem a política ferroviária, validada pelo governo na forma como vemos, não são os cidadãos nem os técnicos, nem os empresários, nem os exportadores que não têm ao seu alcance mecanismos participativos eficientes. Isto é uma amostra simples de uma falha do sistema democrático, como já observado por muitos. Dito de outro modo, o governo insiste na sua politica ferroviária por simples insuficiência do regime democrático, com a cómoda desculpa do plano ser muito caro.

Em resumo, uma das razões desta politica é a comodidade do governo em delegá-la acriticamente e a inércia simples da IP.

2 – Inexistencia de dois orçamentos independentes -  perante o estado calamitoso da rede ferroviária existente e a necessidade de construção de uma rede independente em bitola UIC o indicado seria a existência de dois orçamentos completamente separados, de modo que fosse possível a ação em ambos os campos. Essa é a estrutura da ADIF para a rede convencional, e da ADIF Alta Velocidade para a nova rede. A existência de programas comunitários de apoio financeiro e técnico (CEF) fundamenta esta proposta.

3 – desvalorização sistemática do projeto das redes TEN-T e dos críticos da politica do governo -  Provavelmente apoiados na forma como o senhor ministro das infraestruturas se refere às criticas, encontramos no debate público expressões como falsa questão, mito, cegueira, discussão irracional, perda de tempo, até à classificação dos críticos como treinadores de bancada. É muito curiosa a mudança de posição do prof Costa Silva, depois de na versão inicial do seu plano defender as ligações interoperáveis à Europa, vir dizer que, não sendo especialista, os técnicos o tinham esclarecido que a tecnologia tinha evoluído muito e agora estavam disponíveis aparelhos que permitiam a manutenção da bitola ibérica. Julga-se que se referia aos eixos variáveis para mercadorias (para passageiros é uma solução já clássica, embora de fabricantes espanhois) recentemente homologados de fabrico Azvi-Ogi-Tria e de patente ADIF (ver adiante).

Os defensores da bitola ibérica única argumentam também que Espanha não tem planeada nenhuma colocação em serviço de uma linha em bitola UIC. Trata-se da conhecida técnica de apresentar apenas parte de um problema. A afirmação é verdadeira se se acrescentar “de ligação a Portugal” (recordo a infeliz expressão do secretário de Estado das infraestruturas do XXI governo – “Portugal terá a bitola UIC quando Espanha o decidir”). Esquecem assim o objetivo de Vitoria-Irun para 2023, Valldolid-Burgos em 2023, parte do corredor mediterrânico em 2026 e as ligações a Vigo e a Gijon e o lamentável que é não haver data para a ligação a Madrid (o antigo ministro espanhol La Serna dizia que não estava a fazer uma linha Madrid-Badajoz, mas sim Madrid-Lisboa.

Independentemente da discussão técnica, é importante destacar que esta desvalorização é também a desvalorização do plano europeu das redes transeuropeias TEN-T  expresso claramente no White Paper de 2011, nos regulamentos 1315/2013 e 1316/2013 e nos artigos 170 a 172 do tratado de funcionamento TFUE, o que, só por si, justificaria um processo de infração pelo Estado português. Igualmente é contrariada a disposição europeia para o pacto ecológico (“green deal”) da descarbonização.

É ainda ignorada a repetida reprovação pela própria Comissão Europeia e do Tribunal de Contas Europeu (ECA) desta politica ferroviária e descoordenação com os governos espanhol e francês.

4 – certificação “forçada” da bitola ibérica como interoperável (porque incompatível com as especificações definidas no regulamento 1315, embora justificável como definição de especificações para o material circulante de outros países que tenha de operar em Portugal) através dos organismos de normalização, através de :

4.1 – dispensa de construção de linha nova segundo todas as especificações da interoperabilidade europeia. A desvalorização do tempo de transbordo de mercadorias em contentor e os requisitos administrativos para as circulações dos dois comboios em Irun é um dos principais argumentos da IP, que atribui 2 horas para o efeito e cita o sucesso da ligação China-Duisburg. No entanto, a análise da VTM (Sena da Silva/Linkedin) sobre as dificuldades do comboio da DB Schenker em 2013 refere que a viagem Portugal-Alemanha (2700 km) fazia-se em 3 dias com 1 transbordo, o que compara com os 10.300 km e 16 dias de China-Duisburg com 2 transbordos (se contentores, senão mudança de bogies). Na verdade os franceses dizerem que só dão canais Hendaye-Bordeus em 2032 é contra as regras da UE e deve ser denunciado. Sobre a "facilidade" do transbordo ver na pág.41 do relatório de dez2014 do corredor atlantico-core network-relatorio final, onde se estimam 6 horas só para o transbordo e mais 1h30 para as formalidades de obtenção de canal

4.2 – consideração de que é suficiente eliminar pendentes e facultar cruzamentos para comboios de 750m para se considerar uma linha eletrificada a 25 kV como interoperável (este argumento é curioso por se desconhecer a existencia de defensores do aproveitamento integral do traçado de estradas do século XIX para o traçado de novas auto-estradas)

4.3 – utilização de travessas polivalentes de 4 fixações (funcionamento com os carris na posição da bitola ibérica com possibilidade de mudança posterior para a posição com bitola UIC). Este procedimento é sistemático em Espanha por imposição legal quando não é viável  inaugurar toda a linha em bitola UIC. Deve notar-se que esta solução tem razoabilidade se se tratar de uma linha em via dupla. Como o rendimento da mudança dos carris para a posição UIC é da ordem de 1km/dia, no caso de uma via simples isso corresponderia à sua imobilização, pelo menos parcial, durante o processo de transição. É o caso do troço Évora-Elvas

Outra hipótese em Espanha é a utilização de travessas de 3 fixações, em que é possível a utilização de comboios com bitola ibérica e com bitola UIC. No entanto, existem limitações de velocidade e requisitos para correção da excentricidade. Tanto este e outro tipo de travessas como os eixos variáveis podem considera-se soluções pontuais e transitória para ligação de troços das redes ibérica e UIC, enquanto decorre o processo de construção de toda a linha UIC (como aliás se pode ler no próprio folheto de apresentação pelos fabricantes dos eixos variáveis de mercadorias). Estas soluções são aplicadas principalmente no corredor mediterrânico, com o aproveitamento de alguns troços do traçado existente ou com utilização de novos troços inicialmente com bitola ibérica e posterior mudança para UIC. De referir como ilustração das soluções para continuar utilizando a linha existente em ibérica enquanto não existirem condições para o serviço exclusivo em UIC, o exemplo do túnel de Pajares da ligação às Asturias. Sendo duplo, uma das vias será colocado em serviço com bitola ibérica, e o outro com bitola UIC.

4.4 – crença na usabilidade económica dos eixos variáveis para mercadorias – é duvidosa no caso dos eixos variáveis para mercadorias de patente ADIF por se tratar de uma tecnologia complexa que implica maior peso com a subsequente redução da carga útil, um sistema de monitorização da sua operacionalidade mais complexo, requisitos de assistencia técnica longe do fabricante que minimizem o risco de imobilização do comboio, conflito com a lei da concorrência enquanto fator de rejeição de compra de material circulante com estas caraterísticas por operadores alemães ou franceses.

5 – aproveitamento da janela de oportunidades do material sobrante espanhol para a rede convencional de bitola ibérica -  dada a manutenção de uma rede convencional em Espanha e Portugal de bitola ibérica previsivelmente por várias décadas e a existência de material circulante sobrante espanhol, é de facto explorável esta janela de oportunidade tanto mais que nos dois países, para compensar anos de desinvestimento, se estão a modernizar e eletrificar alguns troços (Badajoz-Puertollano, por exemplo). Não admira assim que o principal operador de mercadorias em Portugal e já significativo em Espanha, a Medway, do grupo MSC, insista, para alem de esperar do governo obras como a eliminação de pendentes e os cruzamentos de 750m, defina como objetivos o serviço das plataformas fronteiriças de Vigo, Salamanca e Badajoz e, em Espanha, a de Vitoria, ligada a Irun por bitola UIC a partir de 2023, ignorando-se os termos de negociação de nova taxa de uso das infraestruturas.

Nesta circunstancias, poderá considerar-se esta janela de oportunidades como uma proteção do governo português aos atuais operadores (Medway e Takargo, do grupo Mota-Engil) como o senhor ministro das infraestruturas do XXI governo chegou a afirmar.

Igualmente se poderá dizer que, sendo a rede de bitola ibérica um obstáculo às exportações e importações além Pirineus, está o governo português a privilegiar as relações com Espanha e o modo marítimo como ligação à Europa.

6 – desvalorização do valor das mercadorias exportadas para França e Alemanha comparativamente com Espanha – apesar da pandemia, o primeiro semestre de 2020 confirmou os valores de 2019 de superação das mercadorias exportadas por todos os modos para França e Alemanha relativamente a Espanha. No primeiro semestre de 2020 o valor das exportações foi de cerca de 7000 milhões de euros para França e Alemanha, ligeiramente superior ao exportado para Espanha. Isto é especialmente significativo na exportação de componentes para automóvel e é um caminho que não deve ser desprezado para a saúde da economia portuguesa

Poderá portanto dizer-se que o governo português, com a sua politica ferroviária, está a proteger as relações com Espanha em detrimento das relações além Pirineus..

7 – desvalorização do grave problema da reconversão das empresas de camionagem que asseguram a maior parte do tráfego de mercadorias para a Europa , sendo que o regulamento 1316/2013 impõe a tranferencia até 2030 de 30% da carga para meios menos poluentes do que o rodoviário.

Parecerá assim que o governo português estará a proteger estas empresas, aparentemente em sintonia com as estruturas sindicais, receosas da entrada de operadores estrangeiros. Numa altura em que o controle da tantas empresas deixou de ser nacional, este argumento não será  muito forte, até porque os operadores estrangeiros, por força de lei, têm de respeitar os seus próprios sindicatos que dariam força aos nacionais.

Como solução para este problema, destaca-se o transporte de camiões ou reboques em vagões (naturalmente que o fabrico destes vagões teria de ser um investimento a repartir pelos operadores e pelo Estado com cofinanciamento comunitário a título excecional, como previsto no TFUE para evitar crises sociais). Esta solução é comum em Espanha (auto-pistas ferroviárias)

8 – opção pelo modo aéreo nas ligações Lisboa -Madrid  e Lisboa-Porto -  Apesar das anunciadas intervenções na linha do Norte (PNI2030, declarações do CSOP, plano Costa Silva), o facto de se privilegiar correções de traçado sob a  forma de “by-passes” (4 perfazendo cerca de metade do comprimento da linha) em detrimento da construção de uma linha nova com as caraterísticas do plano das redes TEN-T, nada indica na politica do governo de deixar de privilegiar o modo a~ereo nas ligações a Madrid e ao Porto. Isto contraria mais uma vez frontalmente as orientações europeias de eliminar, por mais poluentes, as ligações aéreas com menos de 800 km.

Poderá então dizer-se que a politica do governo protege as companhias aéreas, conhecidas pela isenção de impostos petrolíferos e de taxas de carbono e pela sua poluição.

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