ALGUNS ARGUMENTOS CONTRA A CONSTRUÇÃO DE RAÍZ DAS LIGAÇÕES FERROVIÁRIAS À EUROPA EM BITOLA EUROPEIA
O
PRR prevê que novas linhas a serem construídas em Portugal sejam apenas em
bitola ibérica. As razões para justificar essa decisão são a existência por
mais uma ou duas décadas duma rede ibérica em Espanha e a existência de
alternativas tecnológicas que permitem assegurar os tráfegos ferroviários
internacionais entre a rede ferroviária portuguesa, em bitola ibérica, e as
redes de bitola europeia em Espanha e outros países europeus.
Isso
é verdade, mas também é irrelevante, porque o que está em causa não é a existência
de soluções mas a sua competitividade. Essas soluções, os eixos variáveis,
existem em Espanha há mais de 50 anos, e no entanto este país investe todos os
anos centenas ou milhares de milhões de euros do OE (mais os Fundos Europeus)
em linhas de bitola europeia que, se o Governo português estivesse correto,
seriam teriam sido atirados para o lixo.
Será
possível que se estes sistemas resolvessem o problema da bitola de forma
competitiva, os espanhóis, que têm mais de 50 anos de experiência com estes
sistemas, ainda não tivessem dado por isso? Acresce que os próprios fabricantes
desses eixos, recentemente melhorados para mercadorias, em contínuos ensaios e
ainda não aplicáveis às locomotivas, afirmam explicitamente “este eje permitirá
que coexistan tráficos de mercancías en ambos anchos y progresivamente se pueda
cambiar el ancho de la red convencional existente en España, para adaptarlo al
ancho internacional, lo que implicaría mejoras en los tráficos a/desde Europa a
España y en la competitividad del transporte ferroviario de mercancías” [1],
ou seja, destinam-se a facilitar a transição da bitola ibérica para a bitola
europeia em Espanha e não a ser uma alternativa a essa transição da bitola. E
compreende-se que assim seja: estes eixos são tecnicamente muito mais complexos
que eixos standard, isto é, eixos fixos, por isso mais caros e pesados. Mas
sendo uma tecnologia não standard, inegavelmente de alto nível de conceção e de
garantia de segurança, a sua manutenção não pode ser feita como a de vagões de
eixos fixos: assim, para tráfegos internacionais, cada vez que um vagão
equipado com eixos variáveis precisar de reparações terá de ser rebocado para as
instalações do fabricante em Espanha, ou em alternativa, obrigará o operador a
manter permanentemente instalações de apoio e manutenção em diversos locais nas
redes ferroviárias além-Pirenéus. É algo que nenhum operador considerará
economicamente justificado para servir apenas um pequeno mercado como o
português.
No
resto da Europa ninguém usa eixos variáveis para a diferença ibérica de
bitolas; existe apenas um fabricante polaco para utilização de âmbito limitado nos
troços de bitola europeia e russa, realizações experimentais já antigas por
dois fabricantes alemães para as mesmas bitolas (prevalece o sistema de elevação
das caixas e mudança de bogies nos pontos de transição bitolas europeia-russa) e
um fabricante suíço para as bitolas europeia e métrica.
Outro
argumento que se usa contra a introdução da bitola europeia na rede ferroviária
nacional são os custos, que se afirma serem gigantescos, da ordem das dezenas
de milhar de milhões de euros (recorda-se que não se pretende substituir nas próximas
décadas a bitola da rede existente, mas sim construir de raiz uma rede de
bitola europeia).
Como
se sabe, o custo de construção de linhas novas é independente da bitola. Então
a que se deveria os custos gigantescos da bitola europeia? Como a IP coloca
travessas de dupla fixação na rede existente, o principal são os custos de mais
tarde efetuar a mudança da bitola alterando a posição dos carris, porque
durante as obras numa linha, ao contrário de obras de manutenção correntes, a
circulação fica interrompida continuamente durante a duração total das obras. Mesmo
tratando-se de via dupla (o que não é o caso no troço Évora-Caia, contrariamente
ao procedimento espanhol, em que a maior parte do percurso Plasencia-Mérida em
linha nova é em via dupla), existem riscos significativos para o pessoal
trabalhando numa via com circulação na outra.
Então
esses custos não se devem a construir as linhas novas da rede TEN-T em bitola
europeia mas devem-se aos efeitos indiretos, na economia em geral, devido às
interrupções de tráfego ferroviário durante as obras de mudança da bitola. São
custos de manter a bitola ibérica agora e mudar para a bitola europeia mais
tarde, em vez de construir as linhas novas de raiz em bitola europeia, ou seja,
são custos da bitola ibérica e não da bitola europeia.
Note-se
que de acordo com a Comissão Europeia “The new rail lines which are or will
be constructed and the rail lines which are or will be upgraded on that
Corridor by 2030 (e.g. Lisboa-Porto, Sines-Grandola-Lisboa-Merida) are creating
a UIC gauge rail network in Portugal“ [2]. A Comissão aceita que numa
1ºfase as linhas sejam construidas em bitola ibérica e travessas de dupla
fixação (travessas polivalentes), para manter as ligações a Espanha em bitola
ibérica durante mais tempo, mas assume que numa 2ªfase será feita a transição
da bitola. Obviamente a coordenação com Espanha dos timings de chegada da
bitola europeia às fronteiras é indispensável para que haja continuidade e era
isso que se deveria fazer. Por outro lado, a manutenção da bitola ibérica
dificulta o tráfego de mercadorias para além de Espanha, sendo certo que em
2021 o valor das exportações de bens por modos terrestres foi, para Espanha, de
apenas 40% do total de exportações de bens por modos terrestres para a UE.
Outra
objeção contra a bitola europeia: mas se as linhas da rede TEN-T forem
construidas em bitola europeia Portugal ficará com duas redes de bitolas
diferentes: isso fará incorrer em custos adicionais nas plataformas logísticas,
portos e ramais particulares, duplicando linhas ou utilizando soluções de
3ºcarril, e em custos de novo material circulante ou adaptação do existente.
É
justo que acréscimos de custos inevitáveis que os operadores ferroviários a
operar em Portugal tenham para converter material circulante para a bitola
europeia sejam subsidiados pelo Estado, para garantir condições de igualdade na
concorrência com operadores de outras redes ferroviárias que venham a operar em
Portugal, e que por terem material circulante de bitola europeia, não teriam
esses custos.
A
existência de duas redes também tornaria provável ou inevitável a utilização de
intercambiadores e comboios de eixos variáveis, tanto para passageiros como
mercadorias. Todos estes custos seriam custos adicionais da construção da rede
TEN-T em bitola europeia de acordo com as especificações da UE. Provavelmente
concluir-se-ia que esta situação deveria ser limitada no tempo para estes
custos serem temporários e não permanentes, pelo que, depois da construção das
linhas novas
i)
da
rede TEN-T “core”
ii)
da
rede “comprehensive”
Porto-Vigo;
Évora-Beja-Faro-Huelva
,
e
só depois, se sucederia uma 2ª fase de migração da bitola na rede existente
para a bitola europeia. Mas nessa situação, nos itinerários de grande tráfego
haveria a alternativa ferroviária das linhas da Rede TEN-T, que evitaria os
gigantescos custos indirectos das interrupções de tráfego nas linhas
existentes, anteriormente referidos. Assim, o custo principal da 2ªfase seriam
os custos diretos das obras ferroviárias.
Uma
estimativa feita em 2010 [3], indicava um custo médio de 0,5 milhões de
euros/km, que aplicados à rede actual com cerca de 2600km, conduziriam a um
custo, em 2010, de 1300 milhões de euros. Um custo total na atualidade, tendo
em conta a inflação e os ramais particulares e infraestruturas ferroviárias dos
portos e plataformas logísticas, não incluídos nos 2600km, poderia fazer o
custo subir para o dobro aproximadamente. Para enquadrar este valor em termos
relativos refira-se que é inferior ao que o Governo tem de injector na TAP para
a salvar.
Mas
conclui-se, como é óbvio que a introdução e migração para a bitola europeia na
rede ferroviária portuguesa terá custos relevantes, embora muito inferiores ao
que os seus detratores afirmam. A questão é: vale a pena fazer esse
investimento ou não? Para responder a esta pergunta temos de analisar as
consequências da alternativa, a manutenção indefinida da exclusividade da
bitola ibérica.
O cenário que se coloca de perda de
competitividade da rodovia no transporte de mercadorias de média e longa
distância é quase consensual, por várias razões:
i)
embora
os problemas de poluição possam ter soluções técnicas com energia eléctrica ou
outra, não se sabe qual será a competitividade destes sistemas, sendo certo que
a eficiência energética do transporte rodoviário é inferior devido ao maior
coeficiente de resistência ao rolamento pneu-asfalto
ii) os
problemas de congestionamento não têm solução com o tráfego rodoviário atual;
estando toda a política dos Estados Membros da UE orientada para o investimento
na ferrovia, como por exemplo nos novos túneis de base sob os Alpes [4], o
estudo da ligação Alemanha-Dinamarca sob o mar [5] e em particular o investimento
de centenas ou milhares de milhões de euros por ano da Espanha na rede
ferroviária de bitola europeia tendencionalmente projetada para tráfego misto
desde 2013 (passageiros e mercadorias). Por exemplo, prevê-se que o Corredor
Mediterrânico, de França a Algeciras, em bitola europeia e tráfego misto esteja
pronto em cerca de 5 anos [6].
Assim,
sem a rodovia de média e longa distância, o comércio de Portugal com a UE, o
seu principal parceiro comercial, fica dependente da via marítima, que por
causa da baixa frequência, tempo de trânsito (congestionamento com limitação de
velocidade no canal da Mancha e nos acessos aos portos como Antuérpia, Roterdão
e Hamburgo) e mais transbordos nas ligações a origens/destinos no centro da
Europa, não é competitivo para muitos sectores de actividade (ver o Anexo 2 de
[7]).
Sem
o investimento nas ligações interoperáveis à Europa em bitola europeia, a maior
parte das nossas exportações teria de usar as plataformas logísticas espanholas
ligadas à rede de bitola europeia, mais próximas, que a curto prazo será a de Vitoria-Gasteiz e no futuro tenderão a
ser as de Vigo, Salamanca e Badajoz. Não se contesta tratar-se de um nicho de
mercado que possa interessar operadores como os que atualmente exploram as
redes ibéricas. Mas estas redes não têm capacidade para absorver a transferência
determinada pelos regulamentos europeus de 30% da carga rodoviária.
E
nestas circunstâncias, quem é que vai investir em Portugal se precisar de
importar/exportar para a UE? Seria extremamente díficil captar grandes
investimentos industriais para Portugal, com a excepção de alguns que pudessem
ser competitivos apenas com a via marítima. Note-se que o investimento
industrial é indispensável para criar e manter empregos mais bem pagos, além de
também gerar empregos bem pagos no sector dos serviços. Além disso se se quiser
aumentar a produtividade da economia portuguesa é fundamental dar condições de
internacionalização às nossas empresas, aumentando substancialmente o valor das
importações e exportações relativamente ao PIB. A situação de isolamento face à
EU, que a ausência da bitola europeia em Portugal originaria, conduziria ao
emprobrecimento de Portugal que ficaria sem a capacidade de evitar estar na cauda
da UE em termos de riqueza produzida e nível de vida, antes pelo contrário acentuaria
esta tendência.
Temos
assim de pensar se vale a pena poupar nos custos da bitola europeia face a esta
alternativa de exclusividade da bitola ibérica. Parece claro que não, mesmo
numa comparação meramente qualitativa.
REFERÊNCIAS
[1] documento dos fabricantes espanhóis de eixos variáveis para mercadorias
https://www.azvi.es/wp-content/uploads/Ponencia-Eje-OGI.pdf
[2] resposta da DG MOVE de 3set2020
https://manifestoferrovia.blogspot.com/2020/09/resposta-da-dg-move-em-nome-da.html
[3] estimativa da CIP em 2010 para a mudança de bitola da rede existente
http://cip.org.pt/wp-content/uploads/2017/01/Ref-18.pdf
[4] tuneis ferroviários nos Alpes
https://www.yumpu.com/xx/document/read/55608766/rail-conquers-the-alps
https://www.railwaygazette.com/more-action-needed-to-secure-alpine-freight-modal-shift/55631.article
[5] túnel Femern, Dinamarca -Alemanha
https://www.vinci-construction-projets.com/es/realisations/femern-tunnel/
[6] corredor mediterrânico
https://elcorredormediterraneo.com/estado-de-las-obras/
https://www.granadahoy.com/granada/Granada-Corredor-Mediterraneo-Almeria-trenes-mercancias- electrificacion-ancho-internacional_0_1667835045.html
[7] documento da CIP intitulado “O conceito de reindustrialização, industria 4.0 e política industrial para o século XXI. O caso português”
https://cip.org.pt/wp-content/uploads/2017/12/Conselho_Industria_Portuguesa_final-LR.pdf).