Vou tentar responder a uma questão de Henrique Neto, por que razão o governo insiste na sua política
ferroviária exclusiva de bitola ibérica, sabendo que existe cofinanciamento
comunitário (programa CEF -connecting Europe facility – regulamento 1316/2013)
e que com a sua insistência está a prejudicar as exportações portuguesas?.
A discussão bitola ibérica-bitola
UIC (ou europeia, ou standard) não é uma designação muito feliz. O que está em
discussão é o cumprimento ou não, por Portugal, dos compromissos com a União
Europeia relativamente às interligações ferroviárias de Portugal com a Europa
além Pirineus, segundo todos os critérios da interoperabilidade (que para além
da bitola 1435 mm incluem eletrificação 25 kV, sinalização ERTMS, comprimento
de comboios de 740m, pendentes inferiores a 1,5%) expressos no plano das redes
transeuropeias TEN-T (regulamento 1315/2013).
Nesta perspetiva, começo por
recordar que duas figuras importantes no concurso anulado Poceirão-Caia da
linha de tráfego misto (1200 milhões de euros, alta velocidade e mercadorias),
Carlos Fernandes como RAVE e Sérgio Monteiro como organizador do plano de
financiamento, se tornaram posteriormente acérrimos defensores da anulação do
concurso no âmbito dos cortes além da Troika e, provavelmente, para não
desvalorizar a TAP no desejado processo de privatização dado o peso das
ligações Lisboa-Madrid e Lisboa-Porto.
No caso de Carlos Fernandes,
atual vice presidente da IP, é o principal defensor da política do governo,
batendo-se corajosamente na praça pública pela sua dama.
As intervenções públicas do
presidente da IP António Laranjo, por outro lado, insistem na correção da
politica de bitola ibérica única, pretextando que já se gastaram ou
comprometeram 1600 milhões de euros na modernização da rede ferroviária
existente (ressalva para a linha nova Évora-Elvas, em via única e com travessas
bivalentes, aliás considerado um “by-pass” ao percurso por Coruche, Abrantes e
Torre das Vargens) e que têm sido aplicados fundos comunitários segundo os
corredores da rede TEN-T (curiosamente sem cumprir os padrões de
interoperabilidade definidos pela UE).
As declarações do senhor ministro
das infraestruturas (estou farto de ouvir falar da bitola, a bitola europeia é
uma obsessão e um fetiche) e do próprio senhor primeiro ministro confirmam a
firmeza de convicções na bitola ibérica única e no cumprimento das redes TEN-T
sem recurso à bitola UIC.
Conhecida a firmeza das
convicções do senhor primeiro ministro, quer sejam ou não compatíveis com a
realidade, e a sua segurança em como tem
sempre razão, subsistem no entanto duvidas depois da entrevista ao Jornal de Negócios de
fevereiro de 2020, em que declarou que neste quadro comunitário, 2021-2027 nada
haverá para a alta velocidade ferroviária (o que não parece compatível com a
disponibilidade dos fundos CEF se houver projeto e análise de custos
benefícios) e que provavelmente haverá no quadro 2027-2033. Por isso, admite
que até lá se possa debater um novo traçado, mas “quando houver condições políticas”
para tal. Isto é, por um lado quer (quando houver condições politicas!) e por
outro não quer (por não haver condições políticas? Pergunte aos partidos).
Este é o tipo de argumentação que
um pobre técnico ou um empresário, preocupados com o seu planeamento, tem dificuldade em saber o que deve fazer no
dia seguinte, ao sentar-se à mesa de trabalho e começar a trabalhar nas
interligações ferroviárias.
Temos de debater o assunto, com
ou sem condições politicas (o PNI2030? o parecer do CSOP? o plano Costa Silva?
O pacto ecológico da EU? O plano de recuperação pós Covid da UE e nacional? Um
decreto da AR que o governo não queira cumprir?)
Temos de debater um traçado? Mas
ele já está definido no plano das redes TEN-T…
Para agravar a questão, é normal
um prazo de 10 anos entre uma decisão e uma colocação em serviço duma linha
ferroviária, já estamos no fim de 2020, e o objetivo das redes transeuropeias
era 2030. Além de que, de acordo com o regulamento 1315/2013 o ano de 2023 vai ser o ano de revisão da calendarização.
E sabemos o que pode acontecer. O
senhor primeiro ministro manterá a delegação que cometeu aos técnicos da IP
para serem eles a definir o que fazer. Essa delegação foi formalmente acordada
com a própria CE atribuindo-se a gestão e o planeamento das interligações
ferroviárias aos chamados agrupamentos europeus de interesse económico, os
AEIE: para os passageiros, AEIE-AVEP alta velocidade Espanha-Portugal; para as
mercadorias, AEIE-RFC4 rail freight corrido nº4 ou corredor atlantico.
1 – Comodidade do governo e
inércia da IP e investimento elevado - Estes agrupamentos são constituídos
por representantes da IP, ADIF, SNCF e DB e deveriam garantir o planeamento
exequível das 3 ligações interoperáveis da rede TEN-T em Portugal até 2030
(Sines-Leixões, Lisboa-Badajoz, Aveiro-Salamanca; cerca de 1000km, custo total
entre 15000 e 20000 milhões de euros, menos do dobro do previsto compromisso da
TAP com 70 novos aviões, além da viabilidade de apoio financeiro e técnico da UE). O que
não garantiram.
A IP, por eventual inércia dos
seus dirigentes e canalização das verbas para a rede existente.
A ADIF pela canalização das
verbas existentes para regiões de maior poder reivindicativo, caso do “Y”
basco, do corredor mediterrânico, das ligações interoperáveis à Galiza,
Astúrias ou Valladolid-plataforma logística de Vitoria, dotada de bitola
ibérica e, a partir de 2023, de bitola UIC.
A SNCF com a sua repetida
oposição a tudo o que seja tráfego internacional sobreposto ao tráfego local, o
que motiva, em clara infração às regras comunitárias, o sucessivo adiamento da
nova ligação Bordeus-Hendaye, apesar das cimeiras franco-luso-espanholas com
muitas promessas.
A DB porque desde que viu “fugir”
o porto da Cova do Vapor-Bugio, que dotaria Lisboa de uma infraestrutura comparável
ao novo porto de Roterdão (isto é, livre do tráfego fluvial) só investe em
Portugal em camionagem.
São estes agrupamentos que
definem a política ferroviária, validada pelo governo na forma como vemos, não
são os cidadãos nem os técnicos, nem os empresários, nem os exportadores que não
têm ao seu alcance mecanismos participativos eficientes. Isto é uma amostra
simples de uma falha do sistema democrático, como já observado por muitos. Dito
de outro modo, o governo insiste na sua politica ferroviária por simples
insuficiência do regime democrático, com a cómoda desculpa do plano ser muito
caro.
Em resumo, uma das razões desta
politica é a comodidade do governo em delegá-la acriticamente e a inércia
simples da IP.
2 – Inexistencia de
dois orçamentos independentes - perante
o estado calamitoso da rede ferroviária existente e a necessidade de construção
de uma rede independente em bitola UIC o indicado seria a existência de dois
orçamentos completamente separados, de modo que fosse possível a ação em ambos
os campos. Essa é a estrutura da ADIF para a rede convencional, e da ADIF Alta
Velocidade para a nova rede. A existência de programas comunitários de apoio
financeiro e técnico (CEF) fundamenta esta proposta.
3 – desvalorização sistemática
do projeto das redes TEN-T e dos críticos da politica do governo - Provavelmente apoiados na forma como o senhor
ministro das infraestruturas se refere às criticas, encontramos no debate
público expressões como falsa questão, mito, cegueira, discussão irracional, perda
de tempo, até à classificação dos críticos como treinadores de bancada. É muito
curiosa a mudança de posição do prof Costa Silva, depois de na versão inicial
do seu plano defender as ligações interoperáveis à Europa, vir dizer que, não
sendo especialista, os técnicos o tinham esclarecido que a tecnologia tinha
evoluído muito e agora estavam disponíveis aparelhos que permitiam a manutenção
da bitola ibérica. Julga-se que se referia aos eixos variáveis para mercadorias
(para passageiros é uma solução já clássica, embora de fabricantes espanhois) recentemente
homologados de fabrico Azvi-Ogi-Tria e de patente ADIF (ver adiante).
Os defensores da bitola ibérica
única argumentam também que Espanha não tem planeada nenhuma colocação em
serviço de uma linha em bitola UIC. Trata-se da conhecida técnica de apresentar
apenas parte de um problema. A afirmação é verdadeira se se acrescentar “de
ligação a Portugal” (recordo a infeliz expressão do secretário de Estado das
infraestruturas do XXI governo – “Portugal terá a bitola UIC quando Espanha o
decidir”). Esquecem assim o objetivo de Vitoria-Irun para 2023,
Valldolid-Burgos em 2023, parte do corredor mediterrânico em 2026 e as ligações
a Vigo e a Gijon e o lamentável que é não haver data para a ligação a Madrid (o
antigo ministro espanhol La Serna dizia que não estava a fazer uma linha
Madrid-Badajoz, mas sim Madrid-Lisboa.
Independentemente da discussão
técnica, é importante destacar que esta desvalorização é também a
desvalorização do plano europeu das redes transeuropeias TEN-T expresso claramente no White Paper de 2011,
nos regulamentos 1315/2013 e 1316/2013 e nos artigos 170 a 172 do tratado de
funcionamento TFUE, o que, só por si, justificaria um processo de infração pelo
Estado português. Igualmente é contrariada a disposição europeia para o pacto
ecológico (“green deal”) da descarbonização.
É ainda ignorada a repetida
reprovação pela própria Comissão Europeia e do Tribunal de Contas Europeu (ECA)
desta politica ferroviária e descoordenação com os governos espanhol e francês.
4 – certificação “forçada” da
bitola ibérica como interoperável (porque incompatível com as
especificações definidas no regulamento 1315, embora justificável como
definição de especificações para o material circulante de outros países que
tenha de operar em Portugal) através dos organismos de normalização, através de
:
4.1 – dispensa de construção
de linha nova segundo todas as especificações da interoperabilidade europeia. A desvalorização do tempo de
transbordo de mercadorias em contentor e os requisitos administrativos para as
circulações dos dois comboios em Irun é um dos principais argumentos da IP, que
atribui 2 horas para o efeito e cita o sucesso da ligação China-Duisburg. No
entanto, a análise da VTM (Sena da Silva/Linkedin) sobre as dificuldades do
comboio da DB Schenker em 2013 refere que a
viagem Portugal-Alemanha (2700 km) fazia-se em 3 dias com 1 transbordo, o que
compara com os 10.300 km e 16 dias de China-Duisburg com 2 transbordos (se
contentores, senão mudança de bogies). Na verdade os franceses dizerem que só
dão canais Hendaye-Bordeus em 2032 é contra as regras da UE e deve ser
denunciado. Sobre a "facilidade" do transbordo ver na pág.41 do
relatório de dez2014 do corredor atlantico-core network-relatorio final, onde se
estimam 6 horas só para o transbordo e mais 1h30 para as formalidades de
obtenção de canal
4.2 – consideração de que é
suficiente eliminar pendentes e facultar cruzamentos para comboios de 750m
para se considerar uma linha eletrificada a 25 kV como interoperável (este
argumento é curioso por se desconhecer a existencia de defensores do
aproveitamento integral do traçado de estradas do século XIX para o traçado de
novas auto-estradas)
4.3 – utilização de travessas
polivalentes de 4 fixações (funcionamento com os carris na posição da
bitola ibérica com possibilidade de mudança posterior para a posição com bitola
UIC). Este procedimento é sistemático em Espanha por imposição legal quando não
é viável inaugurar toda a linha em
bitola UIC. Deve notar-se que esta solução tem razoabilidade se se tratar de
uma linha em via dupla. Como o rendimento da mudança dos carris para a posição
UIC é da ordem de 1km/dia, no caso de uma via simples isso corresponderia à sua
imobilização, pelo menos parcial, durante o processo de transição. É o caso do
troço Évora-Elvas
Outra hipótese em Espanha é a
utilização de travessas de 3 fixações, em que é possível a utilização de
comboios com bitola ibérica e com bitola UIC. No entanto, existem limitações de
velocidade e requisitos para correção da excentricidade. Tanto este e outro
tipo de travessas como os eixos variáveis podem considera-se soluções pontuais
e transitória para ligação de troços das redes ibérica e UIC, enquanto decorre
o processo de construção de toda a linha UIC (como aliás se pode ler no próprio
folheto de apresentação pelos fabricantes dos eixos variáveis de mercadorias).
Estas soluções são aplicadas principalmente no corredor mediterrânico, com o
aproveitamento de alguns troços do traçado existente ou com utilização de novos
troços inicialmente com bitola ibérica e posterior mudança para UIC. De referir
como ilustração das soluções para continuar utilizando a linha existente em
ibérica enquanto não existirem condições para o serviço exclusivo em UIC, o
exemplo do túnel de Pajares da ligação às Asturias. Sendo duplo, uma das vias
será colocado em serviço com bitola ibérica, e o outro com bitola UIC.
4.4 – crença na usabilidade
económica dos eixos variáveis para mercadorias – é duvidosa no caso dos
eixos variáveis para mercadorias de patente ADIF por se tratar de uma
tecnologia complexa que implica maior peso com a subsequente redução da carga
útil, um sistema de monitorização da sua operacionalidade mais complexo,
requisitos de assistencia técnica longe do fabricante que minimizem o risco de
imobilização do comboio, conflito com a lei da concorrência enquanto fator de
rejeição de compra de material circulante com estas caraterísticas por
operadores alemães ou franceses.
5 – aproveitamento da janela
de oportunidades do material sobrante espanhol para a rede convencional de
bitola ibérica - dada a manutenção
de uma rede convencional em Espanha e Portugal de bitola ibérica
previsivelmente por várias décadas e a existência de material circulante
sobrante espanhol, é de facto explorável esta janela de oportunidade tanto mais
que nos dois países, para compensar anos de desinvestimento, se estão a
modernizar e eletrificar alguns troços (Badajoz-Puertollano, por exemplo). Não
admira assim que o principal operador de mercadorias em Portugal e já
significativo em Espanha, a Medway, do grupo MSC, insista, para alem de esperar
do governo obras como a eliminação de pendentes e os cruzamentos de 750m,
defina como objetivos o serviço das plataformas fronteiriças de Vigo, Salamanca
e Badajoz e, em Espanha, a de Vitoria, ligada a Irun por bitola UIC a partir de
2023, ignorando-se os termos de negociação de nova taxa de uso das
infraestruturas.
Nesta circunstancias, poderá
considerar-se esta janela de oportunidades como uma proteção do governo
português aos atuais operadores (Medway e Takargo, do grupo Mota-Engil) como o
senhor ministro das infraestruturas do XXI governo chegou a afirmar.
Igualmente se poderá dizer que,
sendo a rede de bitola ibérica um obstáculo às exportações e importações além
Pirineus, está o governo português a privilegiar as relações com Espanha e o
modo marítimo como ligação à Europa.
6 – desvalorização do valor
das mercadorias exportadas para França e Alemanha comparativamente com Espanha
– apesar da pandemia, o primeiro semestre de 2020 confirmou os valores de
2019 de superação das mercadorias exportadas por todos os modos para França e
Alemanha relativamente a Espanha. No primeiro semestre de 2020 o valor das
exportações foi de cerca de 7000 milhões de euros para França e Alemanha,
ligeiramente superior ao exportado para Espanha. Isto é especialmente
significativo na exportação de componentes para automóvel e é um caminho que não
deve ser desprezado para a saúde da economia portuguesa
Poderá portanto dizer-se que o
governo português, com a sua politica ferroviária, está a proteger as relações
com Espanha em detrimento das relações além Pirineus..
7 – desvalorização do grave
problema da reconversão das empresas de camionagem que asseguram a maior
parte do tráfego de mercadorias para a Europa , sendo que o regulamento
1316/2013 impõe a tranferencia até 2030 de 30% da carga para meios menos
poluentes do que o rodoviário.
Parecerá assim que o governo
português estará a proteger estas empresas, aparentemente em sintonia com as
estruturas sindicais, receosas da entrada de operadores estrangeiros. Numa
altura em que o controle da tantas empresas deixou de ser nacional, este
argumento não será muito forte, até
porque os operadores estrangeiros, por força de lei, têm de respeitar os seus
próprios sindicatos que dariam força aos nacionais.
Como solução para este problema,
destaca-se o transporte de camiões ou reboques em vagões (naturalmente que o
fabrico destes vagões teria de ser um investimento a repartir pelos operadores
e pelo Estado com cofinanciamento comunitário a título excecional, como previsto
no TFUE para evitar crises sociais). Esta solução é comum em Espanha
(auto-pistas ferroviárias)
8 – opção pelo modo aéreo nas
ligações Lisboa -Madrid e Lisboa-Porto - Apesar das anunciadas intervenções na linha
do Norte (PNI2030, declarações do CSOP, plano Costa Silva), o facto de se
privilegiar correções de traçado sob a
forma de “by-passes” (4 perfazendo cerca de metade do comprimento da
linha) em detrimento da construção de uma linha nova com as caraterísticas do
plano das redes TEN-T, nada indica na politica do governo de deixar de
privilegiar o modo a~ereo nas ligações a Madrid e ao Porto. Isto contraria mais
uma vez frontalmente as orientações europeias de eliminar, por mais poluentes,
as ligações aéreas com menos de 800 km.
Poderá então dizer-se que a
politica do governo protege as companhias aéreas, conhecidas pela isenção de
impostos petrolíferos e de taxas de carbono e pela sua poluição.