sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Encontro quadripartido a propósito da bitola UIC ou europeia

Depois duma troca de argumentos num programa da TVI e nalguma imprensa entre o dr Carlos Vasconcelos, presidente da Medway, e Henrique Neto, empresário e membro do grupo de opositores da politica ferroviária do governo, foi sugerido um encontro para esclarecimento das posições de cada um dos lados, de modo a evitar a proliferação de interpretações distorcidas.

E assim foi possivel organizar um encontro na sede da Medway, à avenida da República, onde a CP tinha a sua direção de Equipamento, e onde visitei colegas nos meus tempos de sinalização ferroviária.

A reunião decorreu num ambiente cordial, com a Medway a cumprir escrupulosamente os seus deveres de anfitriã.

Mas para nós foi uma surpresa o encontro ser quadripartido. Para alem dos esperados "adversários", compareceram representantes da Takargo e da IP.

Daqui concluimos, não sei se precipitadamente mas era a aparência, que o entendimento entre a IP, a Medway e a Takargo é perfeito. A sintonia entre a Medway e a Takargo compreende-se, a segunda não tem até agora feito grandes investimentos com que possa disputar com a primeira uma quota maioritária, e ambas lutam com a dificuldade de uma rede ferroviária obsoleta, com pendentes que exigem uma segunda locomotiva e aumentam os consumos de energia, com troços por eletrificar e, como destacam sempre que podem, com falta de resguardos para cruzamento de comboios com 740 metros.  Com os atuais comboios de 450 metros não é possivel competir com o transporte rodoviario. Não admira assim, até porque tem feito investimentos em material circulante e em plataformas logísticas, que a Medway persista em resultados operacionais negativos.

É um facto, a camionagem não suporta os custos de manutenção da infraestrutura e beneficiam de uma quase isenção de impostos petroliferos e de uma efetiva isenção de taxas de poluição e de congestionamento. 

Na previsão do combate às alterações climáticas e da tendencia para o cumprimento do plano europeu de transferencia para modos menos poluentes da carga rodoviaria no valor de 30%  ate 2030 e de 50% até 2050, seria prudente estudar desde já um plano de reconversão das empresas de camionagem. A nossa sugestão é o desenvolvimento das auto-estradas ferroviarias, ou transporte de camiões ou sem-reboques em vagões. O representante da Takargo manifestou preocupação com o desenvolvimento dos camiões autónomos de tração por hidrogénio. É possivel que seja concretizavel esse projeto, mas considere-se que um comboio pode transportar 40 camiões sem condutor, que o consumo especifico de energia por tonelada-km será sempre superior porque a resistencia ao rolamento é superior no contacto pneu-asfalto comparativamente com o contacto roda-carril, que o hidrogénio obtido por eletrólise exige um consumo de 50 a 60 kWh para produção de  1 kg, equivalente em energia a 1 litro de gasóleo. Daí um rendimento energético do camião de hidrogénio cerca de metade do rendimento do camião diesel, e ainda menor se comparado com o comboio alimentado por catenária com origem renovável. Considerar ainda o consumo elevado de energia para o processamento da condução autónoma.

A unanimidade de pontos de vista das transportadoras Medway e Takargo com a IP é um pouco estranha porque a engenharia de transportes, como qualquer engenharia, não é uma ciencia exata, mas o que transparece é uma doutrina estabilizada (demasiadamente estabilizada, do nosso ponto de vista), aparentemente fruto da definição da estratégia nos agrupamentos europeus de interesse económico AEIE - AVEP, alta velocidade Espanha-Portugal, e RCF4. rail freight corridor nº4 ou atlantic corridor,  reconhecidos pela CE como atores ou mesmo gestores das redes TEN-T e que, de acordo com os nossos interlocutores, se sintetiza assim:

- estão de acordo que a bitola UIC seria um fator ideal para a melhoria do transporte de mercadorias e não são contra a sua adoção nas linhas de ligação à Europa (aqui há concordancia)

- mas consideram que os outros fatores de interoperabilidade, comprimento de 740m, 25 kV, ERTMS, pendentes, são mais importantes e de resolução mais urgente (aqui há discordancia, uma vez que estar a emendar linhas existentes como na linha da Beira Alta para mais tarde introduzir a bitola UIC é agravamento de custos; igualmente discordamos porque, sendo certo que não deve haver pendentes elevados e que deve haver resguardos de 740m, os custos das intervenções corretivas aproximam-se dos custos da construção de linha nova, com estes e outros parâmetros mais adequados para uma exploração energeticamente mais favorável, pelo que, se há vantagem numa linha nova, ela deverá ser em UIC; recordámos ainda o estudo do corredor atlântico já citado pelo eng. Carlos Fernandes, que a bitola UIC permitiria uma redução de custos da tonelada-km de 6% num serviço Leixões-Paris, comparativamente com reduções de 2% utilizando os 25 kV ou o ERTMS, pelo que a irrelevancia da bitola é discutivel)

- sendo a bitola o fator de interoperabilidade menos importante, não havendo data por parte de Espanha para ligar em UIC  Portugal, e parecendo já inexequível em grande parte da Europa o plano das redes TEN-T para 2030, por razões de prioridades e de calendarização não é urgente projetar linhas em UIC em Portugal (este raciocínio poderia até levar a um prazo de 30 anos para a implementação de linhas UIC em Portugal, ultrapassando até o prazo de 2050 para a rede complementar, e sugere a dúvida se os programas da União Europeia são ou não para cumprir e o seu incumprimento justifica ou não uma queixa formal contra os governos que se opõem na prática à sua concretização. Deixámos aos nossos interlocutores uma relação de críticas da Comissão Europeia, da DG MOVE e do ECA (European Court of Auditors) à descoordenação e falta de calendarização dos governos de França. Espanha e Portugal e recordámos as cimeiras luso-franco-espanhola de Talin de 2013 e franco-espanhola de setembro de 2017 em que ficou registado o interesse em avançar com o corredor atlântico. Contestámos ainda a desvalorização da bitola como fator de interoperabilidade uma vez que em engenharia não se esquecem fatores que integram um conjunto, isso reduz o rendimento do conjunto)

- consideram satisfatória a exploração da rede ibérica da península, para além dos postos secos Vigo, Salamanca e Badajoz,  com o serviço da futura plataforma de Vitoria em 2023 com bitola ibérica, donde seguirá por bitola UIC para França (referida a oposição que França faz adiando a nova linha Bordeus-Hendaye, o que mais uma vez mostra que é necessária uma ação politica e diplomática para reverter os atrasos da rede TEN-T e a obstrução em Espanha de ligação à Europa).

- só deverão projetar-se linhas em UIC em Portugal , independentemente de se montarem travessas polivalentes, depois de Espanha definir firmemente as datas de chegada da bitola UIC às fronteiras (discordamos, podem mediar 10 anos entre a decisão e a inauguração de um troço ferroviário, além de que a ligação Sines-Lisboa-Porto-Leixões é independente de Espanha; aqui parece haver acordo em que a linha Lisboa-Porto seja completamente nova, mas persiste o desacordo quanto à bitola. De qualquer modo, parece-nos inadmissivel, por incompatível com o direito internacional e com os planos TEN-T da CE, o argumento de que só possamos ter ligações à Europa em UIC quando Espanha o decidir)

Um dos representantes da IP mostrou os quadros do observador del ferrocarril/ADIF para ilustrar o facto de Espanha não ter programada nenhuma ligação em UIC a Portugal nem nenhum percurso para mercadorias integrado no corredor atlàntico das redes TEN-T . Acrescentou que não há UIC para mercadorias em Espanha para além da linha de Barcelona para Perpignan.

Recordámos a decisão em 2011 do ministério do Fomento espanhol de todas as linhas novas serem para tráfego misto, a previsão do Y basco para 2023, a linha Barcelona-Perpignan para tráfego misto e as recentes declarações de Macron para desenvolver o tráfego de mercadorias, nomeadamente em auto-estradas ferroviárias.

Observámos que os mapas apresentados são de 2018 e que posteriormente circularam notícias dando conta de que existem obras no corredor mediterrânico, que o ministro Abalos tem sido chamado frequentemente por associações de empresários que defendem a construção do corredor mediterranico até 2026 com ligação UIC dos portos mediterranicos a Barcelona e daqui à Europa. Mostrámos tambem noticias dos serviços com vagóes frigorificos pela ligação UIC de Barcelona para Inglaterra e para o Luxemburgo. Igualmente do avanço das ligações para os portos das Asturias, com recurso a ligações de três carris e troços em UIC como numa das vias do tunel de Pajares.

O representante da Takargo informou que estão a prestar serviços à Auto Europa para o porto de Setubal com comboios de 680m de um andar.

O representante da Medway informou que estão a estudar um comboio para a Europa em parceria, estimando 50€ de custo de transbordo por contentor. 

Não têm a curto prazo intenção de investir em eixos intermutáveis (mudança de rodados com os bogies suspensos) ou nos muito falados agora, embora seja uma solução clássica, eixos variáveis (problema de custos, peso, manutenção em paises distantes, exigencia de monitorização a bordo permanente).

Referimos ainda a abertura das linhas de alta velocidade espanholas a operadoras francesas, italiana e espanhola, a necessidade de subir as exportações a 60% do PIB com o apoio da ferrovia nova, e a solução de empresas como a IP terem direções autónomas mas com contabilidades separadas, embora de monitorização mútua, uma para beneficiação, manutenção e modernização, outra para investimentos novos.


Numa frase curta, em resumo, diremos que estamos de acordo quanto à necessidade da bitola UIC, mas divergimos no prazo de execução e nas prioridades. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Alguns argumentos contra a construção de raíz das ligações ferroviárias à Europa em bitola europeia

  ALGUNS ARGUMENTOS CONTRA A CONSTRUÇÃO DE RAÍZ DAS LIGAÇÕES FERROVIÁRIAS À EUROPA EM BITOLA EUROPEIA O PRR prevê q...