domingo, 25 de outubro de 2020

Dos meandros jurídicos da interoperabilidade no sistema ferroviário europeu

 

No meio do ruido na comunicação social em torno do orçamento de Estado surgiu o anuncio pelo XXII Governo da nova linha de alta velocidade Lisboa-Porto em bitola ibérica e travessas polivalentes, e do plano de investimentos PNI 2030 que inclui outros investimentos em novos troços de ferrovia. Oportuno anuncio, para que os eleitores vejam o que perdem se os seus representantes não aprovarem o orçamento, ou simplesmente para que se distraiam do que os possa afligir.

https://www.euractiv.com/section/economy-jobs/news/portugal-to-invest-e43-billion-in-large-infrastructure-by-2030/

Dois dias antes, a Revista Cargo noticiava com algum entusiasmo a transposição para a legislação nacional da diretiva europeia 2016/797 que regula a interoperabilidade no sistema ferroviário europeu.

https://revistacargo.pt/sistema-ferroviario-portugues-compativel-com-a-ue-a-partir-de-31-de-outubro/?utm_source=Revista+Cargo+%7C+Site&utm_campaign=ed7670b33b-RSS_EMAIL_CAMPAIGN&utm_medium=email&utm_term=0_294add96a1-ed7670b33b-53314843

Compreende-se a vontade do jornalista de ilibar o governo de culpas na sua politica ferroviária, que como se sabe dificulta as ligações à Europa além Pirineus.

Mas parece um pouco exagerado dizer que o sistema ferroviário português se torna de repente, por força de um decreto lei, compativel com o da Europa.

Pesquisemos algumas disposições regulamentares da Comissão Europeia para tentar mostrar que a politica nacional, incluindo a construção de uma linha nova Lisboa-Porto em bitola ibérica, incumpre a legislação comunitária. E de forma grave, como espero mostrar.

1 - regulamento 1315/2013 - Comecemos pelo documento base que nos move e que estabelece as redes transeuropeias TEN-T , incluindo as ferroviárias para tráfego misto (passageiros e mercadorias) que na peninsula ibérica são representadas pelo corredor atlantico, sul (Sines/Lisboa-Badajoz-Madrid-Valladolid-Irun) e norte Leixões/Aveiro-Salamanca-Irun, para além da ligação Lisboa-Porto.

Vejamos o que é um regulamento segundo o Tratado de Funcionamento da União Europeia:

https://www.europarl.europa.eu/ftu/pdf/pt/FTU_1.2.1.pdf

de que transcrevo:

"Os regulamentos têm caráter geral, são obrigatórios em todos os seus elementos e diretamente aplicáveis. Devem ser integralmente respeitados por todas as entidades às quais são aplicáveis (particulares, Estados-Membros, instituições da União). São diretamente aplicáveis por todos os Estados-Membros desde a sua entrada em vigor (na data por eles estabelecida ou, à falta dela, no vigésimo dia que se segue à sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia) sem que devam ser objeto de um ato nacional de transposição."

Isto é, um regulamento da União Europeia, como o citado 1315/2013 é uma lei. É obrigatório, deve ser respeitado e nem sequer carece de transposição pelo Estado membro.

Então vamos ver o que diz esta lei:

o art.13º do regulamento 1315/2013  diz: “deve  ser  dada prioridade aos seguintes aspetos: a) Implantação do ERTMS; b)   Migração para a bitola nominal de 1 435 mm;”

Isto é, o XXII Governo (e desgraçadamente, os anteriores) não deu prioridade à bitola UIC, de 1435 mm , apesar de ser isso o que diz a lei (o regulamento europeu).

Diz tambem o regulamento no seu art.3º.o) “"Interoperabilidade",  a  capacidade, incluindo todas  as  condições  regulamentares,  técnicas  e  operacionais,  da  infraestrutura  de  um  modo  de  transporte  permitir  fluxos  de  tráfego  seguros  e  ininterruptos  que  atinjam  os  níveis  de  desempenho  exigidos para essa infraestrutura ou modo;” 

Então poderemos afirmar que nos corredores principais da rede TEN-T desejamos um nível de desempenho correspondente à bitola fixa de 1435 mm superior ao desempenho com eixos telescópicos e intercambiadores (cambiadores de ancho), por exemplo, em termos de circulação sem demoras na mudança de bitola, de velocidade homologada e de manutenibilidade. Por outras palavras, a interoperabilidade é um grau de desempenho, e haverá componentes mais interoperáveis que outros, competindo aos técnicos definir o grau exigível. 

Voltando ao regulamento, o seu art.10º.1c especifica a eliminação de estrangulamentos existentes, o que, em casos como o do troço transfronteiriço Évora-Caia só poderá fazer-se com via dupla e, tendo em vista o objetivo final, uma vez coordenado com Espanha, com a interoperabilidade total. 

No art.39º.2 do regulamento 1315/2013 definem-se as caraterísticas europeias de interoperabilidade.

Transcrevo resumidamente:

"... a infraestrutura da rede principal deve cumprir os seguintes requisitos no que se refere à infraestrutura de transporte ferroviário:

- eletrificação 25 kV AC, - controle ERTMS,
- limitação de pendentes e raios de curvas, - alta velocidade > 250 km/h,
- mercadorias 100-120 km/h,
- carga por eixo 22,5 ton máx,
- cruzamentos de comboios de 740 m,
- bitola 1435 mm (UIC). "

Mudemos agora para outro instrumento jurídico da UE, as diretivas. 


Transcrevendo do site acima:

 "As diretivas vinculam os Estados-Membros destinatários (um, vários ou o conjunto dos mesmos) quanto ao resultado a alcançar, mas deixam às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. O legislador nacional deve adotar um ato de transposição ou uma «medida nacional de execução» para o direito interno, que adapte o direito nacional aos objetivos fixados nas diretivas."

Temos assim para as diretivas um carater vinculativo, sem prejuízo, através da transposição, da forma e dos meios para cumprimento da diretiva.

Serve esta referência para  introduzir a citada acima diretiva 2016/797 "relativa à interoperabilidade do sistema ferroviário na UE", que veio substituir a muito citada diretiva 2008/57, e que foi recentemente alvo de transposição nacional através do decreto lei 91/2020 de 20out2020 como referido no artigo da Revista Cargo.

No art 2º.2 da diretiva 797 pode ler-se a definição de interoperabilidade em sintonia com o regulamento 1315: “permite a circulação segura sem interrupções”.

A diretiva 797 remete para Especificações Técnicas de Interoperabilidade (ETI) com os requisitos essenciais dos componentes de interoperabilidade. No caso da infraestrutura de via das redes de Alta Velocidade, a ETI está anexa à Decisão da Comissão 2002/732/CE, relativa à especificação técnica de interoperabilidade para o subsistema «infra-estrutura» do sistema ferroviário transeuropeu de alta velocidade,  e fixa no seu ponto 4.1.3 a bitola nominal em 1435 mm para o subsistema ferroviário europeu. 

Altura para regressar ao site da legislação europeia e verificar que uma decisão tem carater vinculativo, é obrigatória para os Estados membros. A bitola 1435 mm é obrigatória. O XXII Governo anuncia projetos que incumprem a legislação eropeia e nacional.

Chegados aqui, os defensores da politica ferroviária do XXII Governo dirão indignados, que o regulamento e a diretiva prevêem exceções e abrem a possibilidade de adotar soluções inovadoras como a das bitolas múltiplas.

É verdade, mas devemos observar de mais perto.

O regulamento 1315 (art.39º.2ª.iv) diz que a bitola 1435 mm não é obrigatória numa “nova linha que seja uma extensão de uma rede cuja bitola seja diferente e separada da rede das principais linhas da União.” 

Mas esse não é por exemplo o caso do troço Évora-Caia, que faz parte do corredor atlântico das redes TEN-T, não faz parte duma rede separada (ou querem no XXII Governo que seja?). 

Nem será o caso da nova linha de alta velocidade Lisboa-Porto que não é separada da Europa, nos termos da lista de linhas integrantes das redes TEN-T definidas no regulamento 1315 (ou no XXII Governo querem mesmo que seja, como diz a metáfora, uma ilha ferroviária?).

Ah! mas dirão os defensores da politica governamental, o considerando 2) do regulamento 1315 diz que, para melhoria de todo o sistema ferroviário, incluindo a rede existente de bitola diferente da nominal de 1435 mm,“a interoperabilidade poderia ser reforçada através de soluções inovadoras destinadas a melhorar a compatibilidade entre os sistemas, como o equipamento de bordo e as vias férreas de bitolas múltiplas”.             O que será aplicável à rede nacional existente.

Também é verdade, mas o que está escrito é "melhorar a compatibilidade entre os sistemas, isto é, entre linhas em bitola UIC e linhas em bitola ibérica, o que não é o caso da anunciada linha Lisboa-Porto, em bitola ibérica. É sim o caso das sucessivas expansões da rede UIC em Espanha, em sucessivas interligações com a rede ibérica existente, nomeadamente nos portos, à medida que as linhas em bitola UIC vão crescendo, recorrendo às famosas travessas polivalentes  e às travessas para 3 carris, ou aos comboios de eixos variáveis. 

Que são sempre soluções temporárias, cujo objetivo é viabilizar a instalação da bitola UIC, não adiá-la indefinidamente como aparenta ser a estratégia do XXII Governo. A própria diretiva 797 fala nisso, nas soluções temporárias,  no ponto 1.5 do Anexo III, nestes termos:

"Compatibilidade técnica - “As características técnicas das infraestruturas e das instalações fixas devem ser compatíveis entre si e com as dos comboios que possam circular no sistema ferroviário. Este requisito inclui a integração segura do subsistema do veículo com a infraestrutura. Se a observância dessas características se revelar difícil nalgumas partes da rede, podem ser aplicadas soluções temporárias que garantam a compatibilidade futura.”  

Ora, como pode justificar-se uma linha nova Lisboa-Porto em bitola ibérica, invocando dificuldade de observancia das carateristicas de compatibilidade? Onde está a dificuldade comparativa na instalação de bitola UIC em vez de bitola ibérica? 

A diretiva 797 contraria claramente nos seus considerandos 24 e 25 a criação de regras específicas por virem complicar a aplicação das condições de interoperabilidade. O mesmo faz o regulamento (curiosamente subindo na hierarquia juridica relativamente a diretiva) 2016/796, que define as funções da agencia ERA - European Railway Agency, no seu considerando 20:

"A Diretiva (UE) 2016/798 e a Diretiva (UE) 2016/797 dispõem que as medidas nacionais sejam examinadas do ponto de vista da segurança e da interoperabilidade ferroviária, assim como da compatibilidade com as regras de concorrência. Ambas as diretivas limitam também a possibilidade de os Estados-Membros adotarem novas regras nacionais. O sistema atual, em que continua a existir um grande número de regras nacionais, pode dar origem a conflitos com as regras da União e a falta de transparência e a eventual discriminação de operadores, nomeadamente os de menor dimensão e os recém-chegados ao mercado. Para se passar para um sistema com regras ferroviárias verdadeiramente transparentes e imparciais à escala da União, é necessário reforçar a redução gradual das regras nacionais, nomeadamente das regras operacionais. É essencial que a União disponha de pareceres fundados em conhecimentos independentes e imparciais. Para esse efeito, é necessário reforçar o papel da Agência. "

e insiste no objetivo, interoperabilidade no considerando 24:

"Há que reforçar a interoperabilidade da rede transeuropeia de transportes, devendo a escolha dos novos projetos de investimento a apoiar pela União respeitar o objetivo da interoperabilidade estabelecido no Regulamento (UE) n.o 1315/2013/CE do Parlamento Europeu e do Conselho ( 1 ). A Agência é o organismo apropriado para contribuir para a realização destes objetivos e deverá cooperar estreitamente com as instâncias competentes da União no que toca a projetos de redes transeuropeias de transportes..."

Perante esta doutrina tão clara, não parece possível justificar uma linha nova como a de Lisboa-Porto com regras nacionais específicas como seja a bitola ibérica. E no caso do regulamento 796, deveria o governo português aproveitar as suas disposições (art.76º) que prevêem a cooperação da ERA com as autoridades nacionais para ultrapassar as dificuldades ligadas à bitola ibérica .

Reportando-nos à questão do financiamento, vale citar, a propósito das linhas novas transfronteiriças, a contradição entre a legislação comunitária e o caso da ligação Évora-Caia-Badajoz, como mostra a decisão C(2019)7303 no ponto 3.1.1.a) Ferrovia do seu anexo incluindo a bitola 1435 mm nas prioridades para o financiamento CEF (Connecting Europe Facility) de novas linhas transfronteiriças.

Perante todo este ordenamento jurídico que contraria frontalmente as decisões do XXII Governo e da IP para o desenvolvimento da ferrovia , cabe perguntar, em síntese, se tenciona incumprir também no art.38º.3 do regulamento 1315, que fixa a data de 31dez2030 para ter a rede principal (core) desenvolvida.

Gostaríamos de sugerir, para viabilizar esse objetivo, a exemplo do que se faz em Espanha, que as ações de manutenção, beneficiação e modernização da rede existente de bitola ibérica (rede convencional) e as ações de estudo, projeto, construção e colocação em serviço das novas linhas de bitola UIC sejam desempenhadas por subempresas diferentes com orçamentos separados.

Gostaríamos ainda que as nossas observações fossem entendidas como um alerta para o que entendemos ser um caminho errado com elevada probabilidade de estar a prejudicar a economia nacional, não só ao comprometer a coesão territorial como a dificultar o que deveria ser facilitado, a saber, as exportações.

PS em 28 de outubro de 2020 - Perante a acusação de infração da lei comunitária e nacional, interessa ver a possível defesa do governo e da IP. Basicamente consistirá em dois pontos: 1 - utilização de travessas polivalentes e sua equivalencia como requisito essencial de interoperabilidade; 2 - eventual recurso no futuro a material de circulante de eixos variáveis e também sua equivalência a requisito de interoperabilidade.à ligação do eixo Atlântico Luso-Espanhol, que inclui Lisboa, Porto, Vigo, Santiago de Compostela e Corunha.

Relativamente ao primeiro ponto, o que a lei diz é que a bitola é 1435 mm e o que está a ser instalado em Évora-Caia e foi anunciado para Lisboa-Porto é 1668 mm sem anuncio de data para mudança, o que, tambem segundo a lei, é tarefa prioritária.

Em engenharia, quando se estuda e projeta uma obra em fases, dimensionam-se estas em custos e em tempos de vida útil. No caso vertente, anunciam-se as primeiras fases mas não se diz a sua duração. Isto é, trat-se duma solução transitória ou provisória cuja duração ameaça prolongar-se. Como o primeiro mnistro disse no fim da cimeira da Guarda em 10 de outubro de 2020, "um dia Portugal não estará separado da rede ibérica de Alta Velocidade", sem dizer quando, O que, numa perspetiva de engenharia, é um nulo.

Relativamente ao segundo ponto, é evidente que se trata de material circulante que resolve situações pontuais como a ligação entre uma linha da rede crescente em UIC e uma linha da rede existente de bitola ibérica, e isso é extrmamente importante no período transitório de desenvolvimento da rede UIC. Mas também é claro que se trata de material circulante mais caro, corrente no caso de passageiros e em fas de primeiras utilizações no caso de mercadorias. Por esse facto, não está indicado para longas distancias, inclusivé por causa de eventuais problemas de manutenção longe do país de origem.








1 comentário:

  1. EXCELENTE ! Desnecessário quaisquer outras palavras.
    As minhas felicitações.

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