quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Artigo do eng.Arménio Matias, Que bitola nas novas linhas ferroviárias

 Graças à ADFERSIT, foi divulgado um excelente artigo do eng.Arménio Matias, focando a questão da interoperabilidade ferroviária e da inoperancia de outros empreendimentos públicos, que foi desfavoravelmente comentado por dois técnicos da IP. Ver em

https://adfersit.pt/noticia/620/novas-linhas-ferroviarias-que-bitola

Dado que o meu comentário excede o limite de carateres do site da ADFERSIT, transcrevo-o aqui:


Caros comentadores – Permito-me juntar alguns comentários que perdoarão  atendendo aos meus cabelos brancos, uma vez que na minha vida profissional, no metropolitano de Lisboa, apenas tive de lidar com o limite de 13 toneladas/eixo, longe portanto das 25 toneladas/eixo dos mercadorias. Mas acompanhei, graças à participação numa comissão de normalização, o trabalho de modernização desenvolvido pela CP e REFER na última década do século XX e na  primeira do século XXI, nomeadamente no domínio da sinalização (épica, a colocação em serviço da sinalização do nó de Campolide). Concordo por isso com a afirmação aqui produzida de que existem em Portugal muitos bons técnicos. E acrescento que os encontramos tanto entre os que defendem a exclusividade da bitola ibérica como entre os que apelam o cumprimento até 2030 dos regulamentos 1315 e 1316/2013, concretamente a parte portuguesa das redes “core” transeuropeias TEN-T. Para mim não deveriam por isso ser utilizadas expressões como “ignorantes de bancada”, como já li noutros comentários, ou “desinformação e desconhecimento técnico”, ou “deshonestidade intelectual”. Sendo técnicos, podemos cingir-nos a argumentos técnicos e cálculos.

Por exemplo, só após comparativo de análises de custo-benefícios executadas segundo as normas em vigor na EU poderemos dizer se o traçado A para 250 km/h ou para 350 km/h ou os traçados B e C para essas velocidades máximas, qual das alternativas  deve ser preferida, contabilizando para as várias alternativas o valor da hora dos passageiros, as emissões durante a construção e a operação, estimativa de crescimento económico para as regiões envolvidas, estímulo turístico …o que exige estudos prévios e informação pública dos diferentes passos. Isso faz-se em Espanha, muitas vezes com lentidão, mas faz-se. Dada a extensão da tarefa, apesar de haver know-how em Portugal para o fazer, eu sugiro que nalguns casos, para poupar tempo, se faça um concurso internacional para o estudo das alternativas. Não é vergonha nenhuma, colaborámos no metropolitano com alguns consultores internacionais  , mas  selecionados por concurso.

Sobre a “ligeireza” e “falácia” na proposta de tráfego misto convirá fazer algumas pormenorizações. O acidente na Dinamarca de 2 de janeiro de 2019 na ponte do Great Belt ilustrou o risco do cruzamento de comboios de passageiros e de mercadorias, um semireboque estava mal espiado. O acidente da Adémia de 1 de abril de 2017, felizmente sem vítimas, também relacionado com a manutenção de vagões. A justificação para o tráfego misto (formalizada em Espanha pela resolução da Secretaria de Estado de julho de 2011 que determina a bitola UIC nas linhas novas incluindo o tráfego de mercadorias)  consiste na rentabilização do investimento numa linha para a qual, pelo menos de início, não haverá tráfego de passageiros que por si só  conseguisse essa rentabilização. Então a solução poderá ser reservar o período noturno para a circulação exclusiva de mercadorias. Em alternativa, para permitir os 250 km/h, aumentar o entrevias, embora isso encareça a construção. Assim que o tráfego de passageiros o justifique, “enchendo” todo o diagrama diário, o tráfego de mercadorias poderá passar para a linha convencional progressivamente convertida para UIC através da substituição de travessas por travessas de 3 carris (não de 4 carris) ou adição do sistema SINAV. Não foi este o plano para a linha Madrid-Badajoz no troço Plasencia-Badajoz, em que foram aplicadas travessas polivalentes para 4 carris, mas é o procedimento sistemático no corredor mediterrânico, com utilização de travessas de 3 carris nos troços de ligação entre a rede convencional e a nova rede UIC (não parece possível, considerando a dinâmica das obras do corredor mediterrânico, considerar uma “falácia”  a politica ferroviária espanhola).  Poderia ser o caminho para a nova linha Lisboa-Porto -Vigo (o troço Porto-Vigo faz parte da rede “comprehensive” ou complementar TEN-T  para 2050, mas deveria rever-se o regulamento 1315 para o incluir na rede “core” para 2030) a construir de raíz em UIC. As ligações complementares seriam com travessas de 3 carris para utilização pelo material circulante UIC (confesso o desconhecimento da velocidade máxima para que estarão homologadas as travessas de 3 e 4 carris e o sistema SINAV, mas duvido que o estejam para mais de 250 km/h dada a proximidade das fixações, o que dificultaria o objetivo anunciado de Lisboa-Porto em 1h15min utilizando travessas polivalentes). Assim se evitaria a preocupação manifestada com grandes investimentos em material circulante, dispensando para as ligações complementares exemplificadas (que poderiam continuar a ser utilizadas pelo material circulante convencional que seguiriam temporariamente pela linha convencional Lisboa-Porto-Braga ou proceder o transbordo de passageiros nas estações de alta velocidade, justificado pelo ganho de tempo e por sistemas de despacho de bagagens) a utilização de material circulante de eixos variáveis, de fornecimento mais demorado para fabricantes não espanhois , e, no caso dos vagões de mercadorias, mais pesado e mais exigente em termos de manutenção.

Como muito bem refere o eng.Arménio Matias, a adoção da bitola europeia é um fator da competitividade da nossa economia na EU e as previsões de tráfego não podem ser feitas apenas com a realidade atual (tráfego ferroviário para a Europa além Pirineus nulo). São os regulamentos 1315 e 1316 que o fundamentam, nomeadamente com a fixação da rede “core” em Portugal: Sines/Lisboa-Porto/Leixões (a acrescentar na revisão Leixões-Vigo) + Aveiro-Almeida-Salamanca + Sines/Lisboa-Poceirão-Badajoz , e com a transferência de 30% do tráfego rodoviário para os modos marítimo e ferroviário. Recorda-se que transporte rodoviário e aéreo são mais poluentes e que o tráfego marítimo é menos rápido (e em muitos casos mais poluente apesar de energeticamente mais eficiente por unidade). Em 2019 o valor das exportações por todos os modos para o conjunto Alemanha e França superou o valor das exportações para Espanha, situação que se manteve em 2020 (pelo menos até outubro). Sendo verdade que o tráfego terrestre de mercadorias para Espanha supera em toneladas o tráfego para Alemanha e França, a diferença em valor é reduzida o que indicia produtos exportados para Espanha de menor valor acrescentado.  Não parece assim haver justificação para o incumprimento dos regulamentos para ligação interoperável à Europa além Pirineus,os quais, para mais, garantem cofinanciamento. Esta é a posição de parte significativa do meio empresarial português, especialmente ligado ao setor exportador.

Sobre a relação de uma “administração pública qualificada”, trata-se de um assunto delicado. Sabe-se da tentação dos governos de utilizar técnicos para defender os seus objetivos. Sabe-se como é difícil aos técnicos defenderem os argumentos técnicos que se lhes opõem. A minha experiência pessoal é, por exemplo, na mobilidade na área metropolitana de Lisboa e na expansão do metro. A administração pública impôs a linha circular, contra o parecer dos técnicos com experiência de manutenção e de operação (não há garantias para os técnicos no ativo de contrariarem, com argumentos técnicos, a decisão), ocultando os cálculos do consultor em que se baseou o EIA, recusando a correção dos erros contidos no EIA e indo ao cúmulo de contrariar uma lei da Assembleia da República (faço aqui o paralelo á oposição ao cumprimento dos regulamentos 1315 e 1316, uma vez que estes têm, de acordo com o direito comunitário, força de lei). Não posso subscrever a confiança na administração pública. É verdade que o metro depende de outro ministério que não o das infraestruturas (particularidade curiosa, esta nossa), e que se reconhece o apoio deste ministério á recuperação das empresas ferroviárias portuguesas. Mas voltando ao tema da mobilidade na AML, como justificar a sobrecarga da linha norte-sul com a ligação à linha de Cascais, que é uma linha suburbana que se justificaria integrada no metropolitano (como semelhantemente se fez na área metropolitana do Porto) em vez de estudar uma grande circular externa suburbana atravessando o Tejo, ou a recusa de considerar uma expansão do metro para correspondencia com a linha do oeste  por Loures e Malveira, ou simplesmente a recusa de concessão de uma audiência para debate aberto da questão da interoperabilidade?

E contudo, é o que a “administração pública” tem anunciado, um debate aberto e informado sobre a questão ferroviária no PNI 2030 e no plano de recuperação. Gostaria muito de acreditar, mas tenho muitas dúvidas. E tenho uma provocação ainda a fazer, relacionada com a natureza do debate. Reuni alguma informação, incluindo de Espanha, sobre a interoperabilidade e as ligações à Europa. Estão lá factos e argumentos. É um repositório longo, com muitas ligações. Mas um debate informado exige documentação. Foi o que tentei. Muito gostaria que corrigissem o que lá estará mal, mas que considerassem o que lá está certo.

É esta a ligação :

https://manifestoferrovia.blogspot.com/2021/01/repositorio-sobre-as-interligacoes.html

ou, em Word:

https://1drv.ms/w/s!Al9_rthOlbwevVYTdLBIHfozzSZO?e=mypZY5

Grato à ADFERSIT pela divulgação e votos de saúde para todos.

 


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