sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O comboio fantasma - artigo de Luis Marques

 No seguimento do artigo no Expresso de Luis Marques, que reproduzo no fim deste "post", enviei-lhe o seguinte comentário. 

Passados estes dias, não tendo merecido qualquer resposta, fico a pensar que uma argumentação mais densa pode não agradar aos autores que estarão mais interessados em comentar os "fait divers" do que estudar com profundidade um tema:


 Caro Luis Marques                                                        

 

Assunto: o comboio fantasma expresso de 18 de dezembro

 

Em primeiro lugar obrigado por ter apresentado argumentos pertinentes sobre o tema das ligações ferroviárias de alta velocidade, mesmo discordando de alguns, que no entanto são úteis para um debate informado.

Pessoalmente discordo da política ferroviária do governo, mas aparentemente por razões diferentes das que defende.

De facto, do ponto de vista que apresentou, este projeto de comboio é um esqueleto num armário. Dado que na minha vida profissional, no metropolitano de Lisboa, tive algum contacto com a implementação até ao fim de investimentos públicos de montante elevado, a minha interpretação do “esqueleto” é que foram deliberadamente tomadas algumas decisões erradas num contexto de profundo desprezo pela engenharia, suplantada pelos critérios políticos e estritamente económicos.

Como exemplo, temos a anulação em 2011 do contrato para a ligação em bitola UIC Poceirão-Caia, por 1400 milhões de euros ( já depois de expurgado da 3ª via em bitola ibérica para mercadorias no troço Évora-Caia)  para tráfego misto (passageiros e mercadorias) e que beneficiava de um cofinanciamento comunitário superior a 70%. Se consultar a justificação do Tribunal de Contas para a recusa do visto, provavelmente encontrará uma carta da REFER dizendo que não podia responder às questões postas pelo TC porque o assunto tinha sido tratado pela RAVE e a RAVE já tinha sido extinta.

Do lado espanhol aproveitou-se para desviar verbas para outros empreendimentos ferroviários, enquanto do lado português se foi repetindo insistentemente, para que se acreditasse, que “Espanha nada está a fazer” e que só teremos bitola UIC na fronteira “quando Espanha o decidir”.

O governo da altura apressou-se a dizer que o objetivo passava a ser o transporte de mercadorias. Esquecendo que o contrato anulado já previa isso e justificava o transporte de passageiros de e para Madrid com a maior eficiência energética e menores emissões de gases com efeito de estufa por passageiro do comboio de alta velocidade relativamente ao avião. Mas então a menina sueca ativista ambiental ainda não tinha sido recebida na ONU nem a União Europeia tinha avisado que as viagens aéreas de menos de 600 km tinham de ceder o lugar ao comboio e que o tráfego rodoviário tinha de ser reduzido. Há quase dez anos. Dificil arranjar melhor exemplo do desprezo por uma oportuna proposta de engenharia.

Não referiu no seu artigo, mas julgo que é importante:  a proposta de desenvolvimento de redes ferroviárias de alta velocidade para passageiros e de transporte de mercadorias de longa distância (100-120 km/h) não é uma opção per se do governo português, nem do governo espanhol. Resulta de decisões amplamente debatidas no seio da Comissão Europeia. E que foram vertidas para os regulamentos 1315 (definição das redes transeuropeias TEN-T, incluindo os corredores internacionais interoperáveis) e o 1316/2013 (mecanismo interligar Europa CEF, incluindo o cofinanciamento), os quais, como regulamentos que são, são vinculativos. Têm força de lei. Isto é, Estado membro deve cumprir.

São pertinentes as afirmações finais do seu artigo: “O setor ferroviário em Portugal é uma longa história de fracassos” quando “nem sequer se conseguiu concluir a modernização da linha do Norte” (permito-me recordar algumas exceções, nomeadamente no equipamento de quase toda a rede com sistemas de sinalização e controle de segurança das circulações em substituição do cantonamento telefónico).

Mas contraponho, se pertencemos à União Europeia, como referi, os seus regulamentos são para cumprir. E aqui discordo da política do governo. Apesar do marketing com que ele pretende justificar os seus investimentos, no plano Ferrovia 2020, no plano de recuperação pós pandemia e no PNI 2030. Que estão coerentes com as orientações da Comissão Europeia, embora não sejam o que os regulamentos pedem.

A politica do governo está centrada na gestão pela IP, ex-REFER, do planeamento e execução da rede de alta velocidade, confundindo-se, na maior parte das vezes, com a modernização da rede existente.

Não é esse o procedimento espanhol, a gestora das infraestruturas divide-se em duas subempresas, a ADIF da rede convencional e a ADIF Alta Velocidad, com orçamentos e contabilidades separadas. Além disso, a essência da politica do governo espanhol é a coesão territorial. Coisa distinta da politica do governo português, ao desprezar ostensivamente na cimeira da Guarda a ligação Lisboa-Extremadura-Madrid (a senhora ministra da coesão teve a franqueza de dizer que a opinião oficial era Lisboa-Madrid por avião, sem que o senhor ministro do ambiente e ação climática lhe recordasse que para essas distâncias a CE já esclareceu que é por comboio), em benefício do litoral Lisboa-Vigo.

O seu artigo tem o mérito de reivindicar informações seguras sobre o projeto de alta velocidade. O secretismo na fase de desenvolvimento de projetos de elevado investimento é uma constante neste governo, que gosta de apresentar o projeto terminado de uma forma irreversível, em vez de promover um debate público informado durante o desenvolvimento.

Não sabemos qual o traçado para Lisboa-Porto-Valença visando Vigo, nem as ligações para Sines e Leixões. Foi-nos dito que o objetivo é Lisboa-Porto em 1h15minutos e que serão utilizadas travessas polivalentes, mas estas não estão homologadas para velocidades superiores a 250 km/h o que dificulta o cumprimento do objetivo ( não estou a reivindicar velocidades superiores, apesar da concorrência do avião, porque os custos de construção e de manutenção sobem com o aumento da velocidade máxima de projeto).

A justificação económica duma linha de alta velocidade está, por um lado, na maior rapidez e conforto ( espaço por lugar, acelerações vertical e laterais) relativamente ao modo rodoviário e, por outro, num pequeno acréscimo de tempo de viagem mas maior fluidez de embarque relativamente ao modo aéreo. Em ambos os casos, maior eficiência energética do comboio em termos de consumo de energia e emissão de gases com efeito de estufa por passageiro-km, para a mesma taxa de ocupação e um número mínimo de passageiros. Estes são dados que resultam das leis da Física que, como se sabe, não têm muitas vezes correspondência com os preços praticados. O exemplo mais conhecido é o das viagens aéreas, cuja poluição afeta todos (externalidades) mas em que o poluidor não a paga (veja-se a reação recente dos operadores aéreos ao anúncio de uma taxa de 2 euros por passageiro).

Os dados de que disponho de antes da pandemia sobre a alta velocidade não coincidem com os que indica no seu artigo. Registaram-se  bons resultados com a introdução do low cost em França (Ouigo, antes da pandemia). Programou-se a introdução do low cost na ligação Madrid-Barcelona (600 km) mas adiou-se para depois da pandemia. Regista-se  o sucesso comercial de operadores privados em Itália, a próxima abertura à concorrência em Espanha na ligação Madrid-Barcelona e a clara redução do tráfego aéreo interno em Espanha  (antes da pandemia) em benefício da alta velocidade ferroviária.

Questiona o futuro mas afirma que os Zoom, Teams, Spyke, GoToMeeting, GoToWebinar revolucionaram o mundo do trabalho afetando-o irreversivelmente. É evidente que revolucionaram, mas parafraseando Mark Twain, as notícias sobre tal impacto parecem-me exageradas. Recordo o meu primeiro contacto com uma videoconferência, há cerca de 30 anos Alguém me explicou que era preciso cuidado com a interação invisível com os seus colegas ocultos. Dei-lhe razão quando coordenei uma diversidade de colegas durante o equipamento dos prolongamentos de linhas do metropolitano. Não é comparável uma reunião pluridisciplinar presencial com uma virtual, sem prejuízo de na reunião presencial cada representante ter o seu computador ligado à rede interna e externa da internet. E como certamente concordará com a prioridade ao mérito, talvez concorde também que é mais fácil enganar o avaliador por videoconferência.

Quanto ao teletrabalho, registo o desânimo de quem se viu forçado com a pandemia a trabalhar em casa, e o alívio de muitos pais que viram as escolas dos filhos manterem-se abertas. É muito difícil trabalhar em casa e cuidar das crianças. É muito difícil a a estabilidade emocional em ambiente sistematicamente confinado.

Além de que, convém não esquecer que a mobilidade é um direito. Mas concordo consigo, ela deve ser reinventada. E não será com o “marketing” das ciclovias. Em vez de seminários (webinars) laudatórios das bicicletas, devíamos estar a discutir o planeamento dos modos complementares dos modos pesados, da redução dos custos de construção e de operação destes, do desenvolvimento dos modos ligeiros autónomos “on demand” em sítio próprio (insisto, não se discutem os pormenores destas questões nos seminários nem nas declarações governamentais). De modo a conseguir alternativas válidas ao transporte individual. Que, ou é poluidor, ou gera congestionamento e redução da qualidade de vida nas cidades.

Cingindo-me ao último parágrafo do seu artigo, ou a sua (pertinente) mensagem, diria que sim, a alta velocidade em Portugal deverá ser low cost, para redução dos custos de operação, classe única, extra para mais bagagem (aliás a agilização do despacho de bagagem é uma área a desenvolver), bilhetes só on line, extra para escolha de lugar ou comodidades extra, wi fi para todos, carruagens de dois pisos (solução francesa da Ouigo), tração distribuída mas carruagens motoras e carruagens reboque, caraterísticas segundo o regulamento da interoperabilidade (para redução do custo de aquisição e do tempo de fornecimento), incluindo a bitola standard e o ERTMS (preferencialmente independente do Convel, operação exclusiva na rede de alta velocidade (exceto em muito curtas extensões e num prazo muito curto).

Se mostrar esta lista aos colegas da IP ou aos assessores do governo, dir-lhe-ão que não será assim. É uma pena não podermos discutir estas questões abertamente. É um assunto de interesse público, e assuntos de interesse público são para ser discutidos abertamente, assim o diz o artigo 48º.2 da Constituição da República Portuguesa.

Quanto ao custo-benefício, poderemos fiar-nos na média de construção espanhola e francesa, à volta de 15 milhões de euros por km, mas a engenharia portuguesa tem capacidade para reduzir esse valor, dependendo embora da topografia dos traçados mas otimizando a construção de túneis e viadutos. E sobre o benefício temos de contabilizar, embora os adversários da alta velocidade não gostem, porque dá efetivamente vantagem a esta, o valor do tempo poupado pelos passageiros relativamente ao modo convencional ou rodoviário. Para não ser acusado de manipulador, respigo números duma análise do HS1, o troço de alta velocidade de cerca  de 100 km no UK de ligação de Londres ao Eurotunnel. Em milhões de euros: poupança de tempo relativamente à linha convencional (valor da hora vezes o numero de passageiros)  90,  melhoria de produtividade do trabalho devida à comodidade da viagem 35, redução de gases com efeito de estufa 70 (atribuindo um valor à tonelada de CO2 evitada), atração de turismo ( uma percentagem  dos 2.000 milhões correspondentes aos turistas transportados)    -   fonte: Railway Gazette International, jun2020 .    

Trata-se de um procedimento de cálculo algo subjetivo mas que já está normalizado. No nosso caso, em que as previsões são falíveis ( 1 milhão de passageiros Lisboa-Porto em cada sentido ou 6.000 passageiros por dia nos dois sentidos?), para além do cálculo de custos-benefícios poderá argumentar-se que é viável o equilíbrio operacional, considerando o investimento como despesa pública e cofinanciamento comunitário e não como conta da operadora.

É verdade que decorre uma polémica exacerbada contra os planos do governo inglês que iniciou as obras do HS2 (primeira fase 225 km de Londres a Birmingham), cerca de 50 mil milhões de euros, ou 220 milhões de euros por km !!! (um exagero, mas a vida está muito cara no UK, além de que especificaram velocidade máxima de 400 km/h e isso custa muito mais caro).

É verdade também que o tribunal de contas espanhol foi muito crítico em relação ao desenvolvimento da rede de alta velocidade. Ainda bem, assim podem corrigir os erros, de critério e de planeamento, de que o principal terá sido o excesso de linhas, no entanto justificável pelas razões políticas de coesão inter-regiões.  Mas a análise imparcial dos números da alta velocidade em Espanha talvez desdramatize (cerca de 30 milhões de passageiros por ano, ou 90 mil por dia). Entre 1985 e 2018 a distribuição dos grandes investimentos foi a seguinte : rodovia 55%, ferrovia 31%, aeroportos 7%, portos 7%.   Comparando com outras redes de alta velocidade temos em 2017 o número de passageiros-km em mil milhões, indicando-se entre parenteses a intensidade de utilização da rede em milhões (nº passageiros-km/comprimento da rede em km): Espanha  16 ( 5,4), Japão 101 (33,3), França 58 (20,7), China 578 (18,6), Alemanha 29 (18,1)     -   fonte: Railway Gazette International, nov2020 .                

E é ainda verdade que a Comissão Europeia reafirmou os seus objetivos para a descarbonização dos transportes na sua “Estratégia da mobilidade sustentável e inteligente”, apresentada em 9 de dezembro de 2020, que inclui naturalmente a conclusão da rede core  TEN-T em 2030, aumentando a rede de alta velocidade e o tráfego de mercadorias.

Custa portanto ver a estratégia do governo português de fugir à estratégia europeia e propor-se desistir da ligação Lisboa-Madrid em benefício do “eixo atlântico” (ele próprio integrante da rede TEN-T.

 

Sem dúvida que se subscreve a sua afirmação de que o governo deverá explicar muito bem as opções que tomar, mas eu diria que deveria mudar a sua estratégia e debatê-la abertamente, aceitando sugestões e, especialmente, cumprindo os compromissos com a CE e colaborando segundo esses compromissos com o governo espanhol.

Mas como mensagem final deste comentário, direi que o objetivo fundamental de quem defende o cumprimento da rede core TEN-T e o corredor internacional atlântico, segundo os requisitos da interoperabilidade com a rede europeia, é o fornecimento de condições aos exportadores portugueses para aumentarem as suas exportações, como aliás vem sendo reivindicado por associações como a CIP e a AEP. Para uma economia como a nossa, o objetivo de 60% do peso das exportações no PIB é essencial.

 

Com os melhores cumprimentos e votos de saúde

 

Fernando santos e Silva

 

     ARTIGO NO EXPRESSO

 

Massa Crítica

Luís Marques

O comboio-fantasma

 

O TGV é, a seguir ao aeroporto, o maior e mais antigo esqueleto no armário dos grandes projetos de obras públicas. Vinte anos separam João Cravinho de Pedro Nuno Santos e o projeto foi andando de estação em estação sem sair do mesmo sítio.



“Alice no País das Maravilhas”. Um país chamado Portugal. Anda, parece que anda, mas está parado. Na estação a seguir a Cravinho entrou Durão Barroso, que prometeu não uma, não duas, mas cinco linhas de TGV, para norte, para sul, para Espanha. Depois veio Sócrates, que mudou tudo outra vez e apontou o rumo à Europa. Três estações depois, mas sem sair da primeira, o TGV é de novo a estrela de um gigantesco plano de investimentos.



Vamos, pois, entrar na quarta tentativa. Anos de promessas. Dezenas de projetos atirados borda fora. Obras iniciadas, mas inacabadas. Concursos abertos e fechados sem conclusão. Terrenos expropriados e depois abandonados. Nunca ninguém fez contas a quanto isto já nos custou. Agora sabemos que são €1,3 mil milhões de investimento inicial. 4,3 mil milhões quando estiver concluída a primeira fase, daqui a dez anos. Dez anos. Dois governos e meio. Quem vier a seguir que faça o resto. Ou feche a porta. A nova tentativa tem tudo para acabar da mesma maneira. Parada na mesma estação, onde ficou há 20 anos.



O Governo vai ter de explicar muito bem as opções que vier a tomar. O sector ferroviário em Portugal é uma longa história de fracassos, de abandono, de esbanjamento e até de corrupção

Quem sabe o que vai acontecer ao TGV na próxima década? A França, por exemplo, está a repensar o modelo de transporte de alta velocidade. Dados recentes mostram que o TGV perdeu dois terços da circulação e tem apenas 10% da ocupação em relação ao histórico. Efeito da pandemia, mas não só. A queda começou antes e está a colocar em risco o negócio, baseado no cliente business. Há por isso quem defenda o modelo low cost para atrair outro tipo de passageiros, sem garantir a viabilidade económica desta alternativa.



O sector dos transportes, incluindo o ferroviário, sofrerá o impacto das inovações tecnológicas testadas durante os confinamentos. As novas ferramentas (Microsoft Teams, Zoom, por exemplo) criaram novas formas de comunicação e de trabalho, dentro das empresas e entre as empresas. Hoje é possível reunir não presencialmente com segurança, fiabilidade, qualidade e entre qualquer parte do mundo. De forma rápida e com significativas poupanças, em viagens e logística. O teletrabalho, outra novidade, resistirá à pandemia e veio para ficar. A mobilidade futura não será igual à do passado.



O plano apresentado pelo Governo nada nos diz sobre isto. Que tipo de TGV vamos ter? É business ou low cost? Qual o custo/benefício do investimento, em qualquer das modalidades? Paga-se por si ou viverá de subsídios? É mesmo necessário à economia do pós-covid, num país que nem a modernização da Linha do Norte conseguiu concluir? O Governo vai ter de explicar muito bem as opções que vier a tomar. O sector ferroviário em Portugal é uma longa história de fracassos, de abandono, de esbanjamento e até de corrupção, para suportar mais um comboio-fantasma.

 


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