No seguimento do artigo no Expresso de Luis Marques, que reproduzo no fim deste "post", enviei-lhe o seguinte comentário.
Passados estes dias, não tendo merecido qualquer resposta, fico a pensar que uma argumentação mais densa pode não agradar aos autores que estarão mais interessados em comentar os "fait divers" do que estudar com profundidade um tema:
Caro Luis
Marques
Assunto: o comboio fantasma expresso de 18 de dezembro
Em primeiro lugar obrigado por ter apresentado argumentos
pertinentes sobre o tema das ligações ferroviárias de alta velocidade, mesmo
discordando de alguns, que no entanto são úteis para um debate informado.
Pessoalmente discordo da política ferroviária do governo,
mas aparentemente por razões diferentes das que defende.
De facto, do ponto de vista que apresentou, este projeto de
comboio é um esqueleto num armário. Dado que na minha vida profissional, no
metropolitano de Lisboa, tive algum contacto com a implementação até ao fim de
investimentos públicos de montante elevado, a minha interpretação do
“esqueleto” é que foram deliberadamente tomadas algumas decisões erradas num
contexto de profundo desprezo pela engenharia, suplantada pelos critérios
políticos e estritamente económicos.
Como exemplo, temos a anulação em 2011 do contrato para a ligação
em bitola UIC Poceirão-Caia, por 1400 milhões de euros ( já depois de expurgado
da 3ª via em bitola ibérica para mercadorias no troço Évora-Caia) para tráfego misto (passageiros e mercadorias)
e que beneficiava de um cofinanciamento comunitário superior a 70%. Se
consultar a justificação do Tribunal de Contas para a recusa do visto,
provavelmente encontrará uma carta da REFER dizendo que não podia responder às
questões postas pelo TC porque o assunto tinha sido tratado pela RAVE e a RAVE
já tinha sido extinta.
Do lado espanhol aproveitou-se para desviar verbas para outros
empreendimentos ferroviários, enquanto do lado português se foi repetindo
insistentemente, para que se acreditasse, que “Espanha nada está a fazer” e que
só teremos bitola UIC na fronteira “quando Espanha o decidir”.
O governo da altura apressou-se a dizer que o objetivo
passava a ser o transporte de mercadorias. Esquecendo que o contrato anulado já
previa isso e justificava o transporte de passageiros de e para Madrid com a
maior eficiência energética e menores emissões de gases com efeito de estufa
por passageiro do comboio de alta velocidade relativamente ao avião. Mas então
a menina sueca ativista ambiental ainda não tinha sido recebida na ONU nem a
União Europeia tinha avisado que as viagens aéreas de menos de 600 km tinham de
ceder o lugar ao comboio e que o tráfego rodoviário tinha de ser reduzido. Há
quase dez anos. Dificil arranjar melhor exemplo do desprezo por uma oportuna
proposta de engenharia.
Não referiu no seu artigo, mas julgo que é importante: a proposta de desenvolvimento de redes
ferroviárias de alta velocidade para passageiros e de transporte de mercadorias
de longa distância (100-120 km/h) não é uma opção per se do governo
português, nem do governo espanhol. Resulta de decisões amplamente debatidas no
seio da Comissão Europeia. E que foram vertidas para os regulamentos 1315
(definição das redes transeuropeias TEN-T, incluindo os corredores
internacionais interoperáveis) e o 1316/2013 (mecanismo interligar Europa CEF,
incluindo o cofinanciamento), os quais, como regulamentos que são, são
vinculativos. Têm força de lei. Isto é, Estado membro deve cumprir.
São pertinentes as afirmações finais do seu artigo: “O setor
ferroviário em Portugal é uma longa história de fracassos” quando “nem sequer
se conseguiu concluir a modernização da linha do Norte” (permito-me recordar
algumas exceções, nomeadamente no equipamento de quase toda a rede com sistemas
de sinalização e controle de segurança das circulações em substituição do
cantonamento telefónico).
Mas contraponho, se pertencemos à União Europeia, como
referi, os seus regulamentos são para cumprir. E aqui discordo da política do
governo. Apesar do marketing com que ele pretende justificar os seus
investimentos, no plano Ferrovia 2020, no plano de recuperação pós pandemia e
no PNI 2030. Que estão coerentes com as orientações da Comissão Europeia,
embora não sejam o que os regulamentos pedem.
A politica do governo está centrada na gestão pela IP,
ex-REFER, do planeamento e execução da rede de alta velocidade, confundindo-se,
na maior parte das vezes, com a modernização da rede existente.
Não é esse o procedimento espanhol, a gestora das
infraestruturas divide-se em duas subempresas, a ADIF da rede convencional e a
ADIF Alta Velocidad, com orçamentos e contabilidades separadas. Além disso, a
essência da politica do governo espanhol é a coesão territorial. Coisa distinta
da politica do governo português, ao desprezar ostensivamente na cimeira da
Guarda a ligação Lisboa-Extremadura-Madrid (a senhora ministra da coesão teve a
franqueza de dizer que a opinião oficial era Lisboa-Madrid por avião, sem que o
senhor ministro do ambiente e ação climática lhe recordasse que para essas
distâncias a CE já esclareceu que é por comboio), em benefício do litoral
Lisboa-Vigo.
O seu artigo tem o mérito de reivindicar informações seguras
sobre o projeto de alta velocidade. O secretismo na fase de desenvolvimento de
projetos de elevado investimento é uma constante neste governo, que gosta de
apresentar o projeto terminado de uma forma irreversível, em vez de promover um
debate público informado durante o desenvolvimento.
Não sabemos qual o traçado para Lisboa-Porto-Valença visando
Vigo, nem as ligações para Sines e Leixões. Foi-nos dito que o objetivo é
Lisboa-Porto em 1h15minutos e que serão utilizadas travessas polivalentes, mas
estas não estão homologadas para velocidades superiores a 250 km/h o que
dificulta o cumprimento do objetivo ( não estou a reivindicar velocidades
superiores, apesar da concorrência do avião, porque os custos de construção e
de manutenção sobem com o aumento da velocidade máxima de projeto).
A justificação económica duma linha de alta velocidade está,
por um lado, na maior rapidez e conforto ( espaço por lugar, acelerações
vertical e laterais) relativamente ao modo rodoviário e, por outro, num pequeno
acréscimo de tempo de viagem mas maior fluidez de embarque relativamente ao
modo aéreo. Em ambos os casos, maior eficiência energética do comboio em termos
de consumo de energia e emissão de gases com efeito de estufa por passageiro-km,
para a mesma taxa de ocupação e um número mínimo de passageiros. Estes são
dados que resultam das leis da Física que, como se sabe, não têm muitas vezes
correspondência com os preços praticados. O exemplo mais conhecido é o das
viagens aéreas, cuja poluição afeta todos (externalidades) mas em que o
poluidor não a paga (veja-se a reação recente dos operadores aéreos ao anúncio
de uma taxa de 2 euros por passageiro).
Os dados de que disponho de antes da pandemia sobre a alta
velocidade não coincidem com os que indica no seu artigo. Registaram-se bons resultados com a introdução do low cost
em França (Ouigo, antes da pandemia). Programou-se a introdução do low cost na
ligação Madrid-Barcelona (600 km) mas adiou-se para depois da pandemia.
Regista-se o sucesso comercial de
operadores privados em Itália, a próxima abertura à concorrência em Espanha na
ligação Madrid-Barcelona e a clara redução do tráfego aéreo interno em Espanha (antes da pandemia) em benefício da alta
velocidade ferroviária.
Questiona o futuro mas afirma que os Zoom, Teams, Spyke,
GoToMeeting, GoToWebinar revolucionaram o mundo do trabalho afetando-o
irreversivelmente. É evidente que revolucionaram, mas parafraseando Mark Twain,
as notícias sobre tal impacto parecem-me exageradas. Recordo o meu primeiro
contacto com uma videoconferência, há cerca de 30 anos Alguém me explicou que
era preciso cuidado com a interação invisível com os seus colegas ocultos.
Dei-lhe razão quando coordenei uma diversidade de colegas durante o equipamento
dos prolongamentos de linhas do metropolitano. Não é comparável uma reunião
pluridisciplinar presencial com uma virtual, sem prejuízo de na reunião
presencial cada representante ter o seu computador ligado à rede interna e
externa da internet. E como certamente concordará com a prioridade ao mérito,
talvez concorde também que é mais fácil enganar o avaliador por
videoconferência.
Quanto ao teletrabalho, registo o desânimo de quem se viu
forçado com a pandemia a trabalhar em casa, e o alívio de muitos pais que viram
as escolas dos filhos manterem-se abertas. É muito difícil trabalhar em casa e
cuidar das crianças. É muito difícil a a estabilidade emocional em ambiente
sistematicamente confinado.
Além de que, convém não esquecer que a mobilidade é um
direito. Mas concordo consigo, ela deve ser reinventada. E não será com o
“marketing” das ciclovias. Em vez de seminários (webinars) laudatórios das
bicicletas, devíamos estar a discutir o planeamento dos modos complementares
dos modos pesados, da redução dos custos de construção e de operação destes, do
desenvolvimento dos modos ligeiros autónomos “on demand” em sítio próprio
(insisto, não se discutem os pormenores destas questões nos seminários nem nas
declarações governamentais). De modo a conseguir alternativas válidas ao
transporte individual. Que, ou é poluidor, ou gera congestionamento e redução
da qualidade de vida nas cidades.
Cingindo-me ao último parágrafo do seu artigo, ou a sua
(pertinente) mensagem, diria que sim, a alta velocidade em Portugal deverá ser
low cost, para redução dos custos de operação, classe única, extra para mais
bagagem (aliás a agilização do despacho de bagagem é uma área a desenvolver),
bilhetes só on line, extra para escolha de lugar ou comodidades extra, wi fi
para todos, carruagens de dois pisos (solução francesa da Ouigo), tração
distribuída mas carruagens motoras e carruagens reboque, caraterísticas segundo
o regulamento da interoperabilidade (para redução do custo de aquisição e do
tempo de fornecimento), incluindo a bitola standard e o ERTMS
(preferencialmente independente do Convel, operação exclusiva na rede de alta
velocidade (exceto em muito curtas extensões e num prazo muito curto).
Se mostrar esta lista aos colegas da IP ou aos assessores do
governo, dir-lhe-ão que não será assim. É uma pena não podermos discutir estas
questões abertamente. É um assunto de interesse público, e assuntos de
interesse público são para ser discutidos abertamente, assim o diz o artigo
48º.2 da Constituição da República Portuguesa.
Quanto ao custo-benefício, poderemos fiar-nos na média de
construção espanhola e francesa, à volta de 15 milhões de euros por km, mas a
engenharia portuguesa tem capacidade para reduzir esse valor, dependendo embora
da topografia dos traçados mas otimizando a construção de túneis e viadutos. E
sobre o benefício temos de contabilizar, embora os adversários da alta
velocidade não gostem, porque dá efetivamente vantagem a esta, o valor do tempo
poupado pelos passageiros relativamente ao modo convencional ou rodoviário.
Para não ser acusado de manipulador, respigo números duma análise do HS1, o
troço de alta velocidade de cerca de 100
km no UK de ligação de Londres ao Eurotunnel. Em milhões de euros: poupança de
tempo relativamente à linha convencional (valor da hora vezes o numero de
passageiros) 90, melhoria de produtividade do trabalho devida à
comodidade da viagem 35, redução de gases com efeito de estufa 70 (atribuindo
um valor à tonelada de CO2 evitada), atração de turismo ( uma percentagem dos 2.000 milhões correspondentes aos
turistas transportados) - fonte: Railway Gazette International,
jun2020 .
Trata-se de um procedimento de cálculo algo subjetivo mas
que já está normalizado. No nosso caso, em que as previsões são falíveis ( 1
milhão de passageiros Lisboa-Porto em cada sentido ou 6.000 passageiros por dia
nos dois sentidos?), para além do cálculo de custos-benefícios poderá
argumentar-se que é viável o equilíbrio operacional, considerando o
investimento como despesa pública e cofinanciamento comunitário e não como
conta da operadora.
É verdade que decorre uma polémica exacerbada contra os
planos do governo inglês que iniciou as obras do HS2 (primeira fase 225 km de
Londres a Birmingham), cerca de 50 mil milhões de euros, ou 220 milhões de
euros por km !!! (um exagero, mas a vida está muito cara no UK, além de que
especificaram velocidade máxima de 400 km/h e isso custa muito mais caro).
É verdade também que o tribunal de contas espanhol foi muito
crítico em relação ao desenvolvimento da rede de alta velocidade. Ainda bem,
assim podem corrigir os erros, de critério e de planeamento, de que o principal
terá sido o excesso de linhas, no entanto justificável pelas razões políticas
de coesão inter-regiões. Mas a análise
imparcial dos números da alta velocidade em Espanha talvez desdramatize (cerca
de 30 milhões de passageiros por ano, ou 90 mil por dia). Entre 1985 e 2018 a
distribuição dos grandes investimentos foi a seguinte : rodovia 55%, ferrovia
31%, aeroportos 7%, portos 7%. Comparando
com outras redes de alta velocidade temos em 2017 o número de passageiros-km em
mil milhões, indicando-se entre parenteses a intensidade de utilização da rede
em milhões (nº passageiros-km/comprimento da rede em km): Espanha 16 ( 5,4), Japão 101 (33,3), França 58 (20,7),
China 578 (18,6), Alemanha 29 (18,1)
- fonte: Railway Gazette International,
nov2020 .
E é ainda verdade que a Comissão Europeia reafirmou os seus
objetivos para a descarbonização dos transportes na sua “Estratégia da
mobilidade sustentável e inteligente”, apresentada em 9 de dezembro de 2020,
que inclui naturalmente a conclusão da rede core TEN-T em 2030, aumentando a rede de alta
velocidade e o tráfego de mercadorias.
Custa portanto ver a estratégia do governo português de
fugir à estratégia europeia e propor-se desistir da ligação Lisboa-Madrid em
benefício do “eixo atlântico” (ele próprio integrante da rede TEN-T.
Sem dúvida que se subscreve a sua afirmação de que o governo
deverá explicar muito bem as opções que tomar, mas eu diria que deveria mudar a
sua estratégia e debatê-la abertamente, aceitando sugestões e, especialmente,
cumprindo os compromissos com a CE e colaborando segundo esses compromissos com
o governo espanhol.
Mas como mensagem final deste comentário, direi que o
objetivo fundamental de quem defende o cumprimento da rede core TEN-T e o
corredor internacional atlântico, segundo os requisitos da interoperabilidade
com a rede europeia, é o fornecimento de condições aos exportadores portugueses
para aumentarem as suas exportações, como aliás vem sendo reivindicado por
associações como a CIP e a AEP. Para uma economia como a nossa, o objetivo de
60% do peso das exportações no PIB é essencial.
Com os melhores cumprimentos e votos de saúde
Fernando santos e Silva
Massa
Crítica
Luís
Marques
O
comboio-fantasma
O TGV
é, a seguir ao aeroporto, o maior e mais antigo esqueleto no armário dos
grandes projetos de obras públicas. Vinte anos separam João Cravinho de Pedro
Nuno Santos e o projeto foi andando de estação em estação sem sair do mesmo
sítio.
“Alice
no País das Maravilhas”. Um país chamado Portugal. Anda, parece que anda, mas
está parado. Na estação a seguir a Cravinho entrou Durão Barroso, que prometeu
não uma, não duas, mas cinco linhas de TGV, para norte, para sul, para Espanha.
Depois veio Sócrates, que mudou tudo outra vez e apontou o rumo à Europa. Três
estações depois, mas sem sair da primeira, o TGV é de novo a estrela de um
gigantesco plano de investimentos.
Vamos,
pois, entrar na quarta tentativa. Anos de promessas. Dezenas de projetos
atirados borda fora. Obras iniciadas, mas inacabadas. Concursos abertos e
fechados sem conclusão. Terrenos expropriados e depois abandonados. Nunca
ninguém fez contas a quanto isto já nos custou. Agora sabemos que são €1,3 mil
milhões de investimento inicial. 4,3 mil milhões quando estiver concluída a
primeira fase, daqui a dez anos. Dez anos. Dois governos e meio. Quem vier a
seguir que faça o resto. Ou feche a porta. A nova tentativa tem tudo para
acabar da mesma maneira. Parada na mesma estação, onde ficou há 20 anos.
O
Governo vai ter de explicar muito bem as opções que vier a tomar. O sector
ferroviário em Portugal é uma longa história de fracassos, de abandono, de
esbanjamento e até de corrupção
Quem
sabe o que vai acontecer ao TGV na próxima década? A França, por exemplo, está
a repensar o modelo de transporte de alta velocidade. Dados recentes mostram
que o TGV perdeu dois terços da circulação e tem apenas 10% da ocupação em
relação ao histórico. Efeito da pandemia, mas não só. A queda começou antes e
está a colocar em risco o negócio, baseado no cliente business. Há por isso
quem defenda o modelo low cost para atrair outro tipo de passageiros, sem
garantir a viabilidade económica desta alternativa.
O
sector dos transportes, incluindo o ferroviário, sofrerá o impacto das
inovações tecnológicas testadas durante os confinamentos. As novas ferramentas
(Microsoft Teams, Zoom, por exemplo) criaram novas formas de comunicação e de
trabalho, dentro das empresas e entre as empresas. Hoje é possível reunir não
presencialmente com segurança, fiabilidade, qualidade e entre qualquer parte do
mundo. De forma rápida e com significativas poupanças, em viagens e logística.
O teletrabalho, outra novidade, resistirá à pandemia e veio para ficar. A
mobilidade futura não será igual à do passado.
O plano
apresentado pelo Governo nada nos diz sobre isto. Que tipo de TGV vamos ter? É
business ou low cost? Qual o custo/benefício do investimento, em qualquer das
modalidades? Paga-se por si ou viverá de subsídios? É mesmo necessário à
economia do pós-covid, num país que nem a modernização da Linha do Norte
conseguiu concluir? O Governo vai ter de explicar muito bem as opções que vier
a tomar. O sector ferroviário em Portugal é uma longa história de fracassos, de
abandono, de esbanjamento e até de corrupção, para suportar mais um
comboio-fantasma.
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