domingo, 7 de fevereiro de 2021

Vagões de eixos variáveis para mercadorias

 

 Junto comentários , inseridos a azul no texto do artigo de Carlos Cipriano no Público de 3 fev2021 (  https://www.publico.pt/2021/02/03/economia/noticia/bruxelas-financia-projecto-resolve-problema-bitola-mercadorias-1948974  ).

Carlos Cipriano é um defensor da estratégia oficial do governo e da IP mas é um bom conhecedor da ferrovia, para além de bom jornalista.

Defende a exclusividade da bitola ibérica e já afirmou que antes de 40 anos não se justifica a bitola UIC em Portugal, mas penso que devemos cingir a discussão  a argumentos técnicos e não fazer como alguns comentadores defensores da estratégia oficial que roçam o insulto (já nos chamaram ignorantes de bancada, que temos uma obsessão ou que já enjoa como se diz num comentário a este artigo).

Para mim os dois principais argumentos são o cumprimento das diretivas comunitárias (implicando naturalmente o cofinanciamento e os prévios anteprojetos) e a potenciação do aumento das exportações para a Europa. Penso que é no que devemos insistir, compreendendo que também é natural que quem tenha estado ligado à ferrovia nacional pense que se conseguem resolver as coisas com os meios disponíveis, incluindo a bitola ibérica e os sistemas de transbordo, de substituição de eixos ou bogies, e finalmente, de eixos variáveis.

Quanto à Medway e companhias colaborativas como a Takargo, Transfesa, Captrain, recordo a afirmação do dr Carlos Vasconcelos, que enquanto o tráfego transfronteiriço para a Europa for pequeno, até 2 serviços semanais, a situação é sustentável. Só que nós queríamos que o tráfego aumentasse. Evidentemente que duvido que a Medway compre vagões de eixos variáveis, mas as companhias espanholas talvez vão nisso, para percursos específicos, sabendo que Vitoria-Paris são menos de 800 km. Portanto a divergência é de tempo (Carlos Cipriano) ou de volume de tráfego (Carlos Vasconcelos).

 

Vamos então aos meus comentários

 

 

 

 

 

Bruxelas financia projecto que resolve o problema da bitola nas mercadorias pode resolver, mas não completamente

Aposta na adaptação do material circulante é forma rápida de alcançar a interoperabilidade porque a mudança de bitola “leva tempo, é caro e cria interrupções temporárias no tráfego” ter uma frota de vagões de eixos variáveis pode ser mais barato mas também é caro, nomeadamente quanto à manutenção, e poderá não ser rápido (dependerá do tempo de fabrico e das prioridades dos percursos decididas pelos operadores).

Carlos Cipriano

3 de Fevereiro de 2021, 6:30

 

A Comissão Europeia atribuiu 1,1 milhões de euros a um projecto espanhol que consiste em desenvolver vagões de mercadorias com eixos variáveis para poder circular entre bitolas (distância entre carris) diferentes.

Este sistema já existe há várias décadas para os comboios de passageiros em Espanha, incluindo os de alta velocidade, cujos eixos “encolhem” ou “esticam” para que as rodas se adaptam à bitola em que circulam. O sistema existe também na Polónia há vários anos (sistema SUW2000 nas fronteiras com a Bielorussia e Lituania), incluindo para mercadorias, mas o sistema preferencialmente usado nas fronteiras com a bitola russa é o transbordo ou mudança de eixos ou bogies, possivelmente por limitações de velocidade máxima dos bogies de eixos variáveis.

Para as mercadorias o princípio é o mesmo, mas há questões técnicas a resolver devido ao peso e, sobretudo, à forma de produzir em massa - e a preços competitivos – vagões para os operadores ferroviários de carga. Pontos fracos do sistema: maior peso (mais pesados cerca de 7% do peso da carga útil  segundo Vicente Rallo, ver https://www.skyscrapercity.com/threads/tecnolog%C3%ADa-cambiadores-autom%C3%A1ticos-de-ancho-de-v%C3%ADa.1219965/page-20 )     aumentando assim o preço do transporte para longas distancias por menor carga transportada para os mesmo quilómetros; manutenção  mais cara e exigente obrigando a um sistema automático de monitorização do estado de funcionamento (esta desvantagem poderá não ser significativa quando as diretivas obrigarem ao sistema de monitorização para os vagões de eixos fixos para monitorização dos engates automáticos e do estado dos rolamentos e desgaste das rodas) , obriga a equipamento e pessoal especializado, (por exemplo para substituir rodados desgastados) o que levanta problemas no caso de ocorrências a longa distancia (recorda-se que chega a haver vagões parados longe da origem porque a cobertura de lona se desprendeu e isso é contra a segurança); sendo os vagões de eixos variáveis e a sua manutenção mais caros, supondo uma vida útil igual à dos vagões de eixos fixos, o preço por km resulta mais elevado, o que agravará o preço para longas distancias (Madrid-Paris cerca de 1050 km) acentuando assim a sua vocação para distancias curtas e médias.

O projecto espanhol está a ser desenvolvido pelas empresas Azvi e Tria, em parceria com o gestor de infra-estruturas ferroviárias Adif (homólogo da IP). Penso que já se pode considerar desenvolvido, uma vez que já se concluíram os testes para dois tipos de rodas. O financiamento é do Connecting Europe Facility (CEF).

Fonte oficial da Comissão Europeia explica ao PÚBLICO que tanto a mudança de bitola, como a utilização de material circulante com eixos variáveis, são opções válidas para se alcançar a interoperabilidade ferroviária entre a Península Ibérica e o resto da Europa. Parece que será essa a posição da DG MOVE, mas não é o que está escrito nas diretivas que referem explicitamente o caso semelhante dos países bálticos, em que a orientação é mesmo construir linhas novas em bitola UIC. Aqui cabe recordar que o termo mudança ou migração da bitola presta-se a confusões, o que as diretivas mandam (atenção que os regulamentos têm força de lei) é usar a bitola UIC nas linhas novas, não mudar as linhas de bitola ibérica para UIC. A experiencia que tive no metro foi que, sempre que era necessária uma melhoria, era preferível minimizar a intervenção no material circulante relativamente às infraestruturas. Cito o 4th Railway Package/Technical Pillar que inclui a diretiva 2016/797 para a interoperabilidade, que restringe as regras nacionais face às regras comunitárias por razões de normalização, e a diretiva 2016/2370  que manda abrir as redes à concorrência (regras nacionais específicas como a bitola ibérica podem ser consideradas obstáculos à concorrência) mantendo a liberdade dos Estados membros terem a operação e as infraestruturas separadas ou não, de posse pública ou privada.  Mas refere que o material de bitola variável “ajuda a aumentar a rapidez para alcançar a interoperabilidade, pois mudar a bitola nas linhas já existentes leva tempo, é caro e cria interrupções temporárias no tráfego”. É inquestionável que os eixos variáveis para mercadorias são uma boa solução dentro da peninsula ibérica para o período em que coexistirão linhas de bitola ibérica a integrar nas redes TEN-T, de ligação  a portos ou plataformas logísticas, por exemplo, a novas linhas UIC. No entanto, para este problema também existe a solução das travessas para o terceiro carril. Quanto às travessas polivalentes, vale o mesmo argumento de interrupções de tráfego quando tiver de ser mudada a bitola. Para ligação em mercadorias do corredor atlântico a França e Alemanha note-se que a plataforma logistica de Vitoria, quando estiver ligada a Hendaye por UIC, poderá tornar competitivo, relativamente aos eixos variáveis, o  transbordo entre vagões fixos de bitola ibérica e vagões fixos de bitola UIC por não exigir o sincronismo entre os dois comboios e porque o custo do transporte por km dos vagões de eixos variáveis é superior aos de eixos fixos ( embora o ideal fosse o percurso desde Sines ser em bitola UIC).

Este projecto tem também um apoio de 6,4 milhões de euros do Estado espanhol, através do Ministério da Ciência e Inovação. Segundo o Adif, “este sistema resolve o problema da existência de redes com diferentes tipos de bitola”, dado que “um comboio de mercadorias equipado com vagões de eixos variáveis pode circular entre as diferentes fronteiras com bitolas distintas”.

Na UE, além da Península Ibérica, só os países bálticos, a Finlândia e a Irlanda têm distâncias entre carris diferentes do resto das redes. No caso da Finlandia e dos países bálticos, estão empenhados no projeto Rail Baltica, com todas as caraterísticas da interoperabilidade dos regulamentos, a ligar numa primeira fase as capitais da Estónia. Letónia e Lituania. No caso da Irlanda, é curioso como uma das consequências do Brexit foi integrar a Irlanda, através de ligações por ferry, no corredor atlântico, será que vão manter a sua bitola de 1600 mm ou farão o up-grade para 1435 mm? Juntamente com os acrescentos ao corredor atlântico  propostos por Espanha para a Galiza, Astúrias e Leon, ao mesmo tempo que privilegia os investimentos no corredor mediterrânico, são ameaças ao cofinanciamento para as ligações de Portugal à Europa além Pirineus

A Espanha está muito longe de mudar a bitola das suas linhas para o formato europeu, pelo que não faz sentido Portugal investir milhões a mudar a bitola ou a construir novas linhas em bitola europeia que não teriam continuidade no lado espanhol. Mais uma vez se sublinha que o objetivo principal a curto e médio prazo não é mudar a bitola de 1668 mm para 1435 mm, mas construir linhas novas com 1435 mm, para passageiros com velocidade competitiva com o avião, e para mercadorias com pendentes inferiores a 1,25 % (utilizando a mesma linha da alta velocidade quando possível), e que as linhas novas dos corredores atlântico e mediterrânico fazem parte do regulamento 1315/2013 com o objetivo 2030.

O país vizinho só possui linhas com bitola europeia para serviço de passageiros (cera de 3.000 km e em expansão), com excepção de um pequeno troço para mercadorias entre o porto de Barcelona e a fronteira francesa, o qual tem tido uma utilização muito reduzida. E a construção de novas linhas para mercadorias em bitola europeia, em curso no País Basco desde 2006, tem vindo a atrasar-se e só deverá estar concluída em 2028 (a informação de que disponho é 2026, e para o corredor mediterrânico, ligação de Valencia, 2025; a considerar ainda para a ligação aos portos das Astúrias, vários troços em construção).

Para a Infraestruturas de Portugal (IP), há outros obstáculos a resolver que são mais importantes do que a bitola a fim de se conseguir uma maior interoperabilidade e consequente redução do custo de transporte de mercadorias. Entre eles, estão a electrificação das linhas e o comprimento dos comboios (quanto mais compridos, mais barato se torna o custo de cada contentor transportado). Num estudo cedido ao PÚBLICO que compara os custos de um contentor sobre carris entre Leixões e Paris e Mannheim, a empresa estima que o aumento do comprimento dos comboios pode reduzir o custo em 10% e 12%, respectivamente, para aqueles dois destinos. Segue-se a bitola, com poupanças de 7% e 6%. Nesse mesmo estudo, a eletrificação poupava respetivamente 2% e 1% e o ERTMS 2% e 2% . Em análises multiccritérios não se deve reduzir os fatores de avaliação, Tanto a eletrificação como o ERTMS são prioritários do ponto de vista da interoperabilidade, mas se se fosse a utilizar este argumento, a bitola seria “mais prioritária”. Esta estimativa ilustra no entanto bem o facto de resolver o problema dos estrangulamentos para as anossas exportações para a Europa além Pirineus.

No entanto, há ainda a optimização de processos ligada as questões administrativas que não exigem investimentos em infra-estruturas e que podem reduzir os custos entre 13% a 19%. Tudo isto para concluir que a mudança de bitola está longe de ser uma prioridade. A simples estimativa de economia de 7% e 6% para Paris e Mannheim contraria a classificação “ está longe”.

“Mudar a bitola implica custos de milhares de milhões, enquanto os investimentos em material circulante de eixos variáveis se medem em dezenas de milhões”, diz Carlos Fernandes, vice-presidente da IP. Razão pela qual entende que “a migração da bitola em Portugal deve ser cuidadosamente ponderada e articulada com os desenvolvimentos em Espanha”. Mais uma vez se recorda que o objetivo a curto e médio prazo não é “migrar”, é cumprir o regulamento 1315/2013 para 2030. E inteiramente de acordo, a coordenação com Espanha é imperativa, o que as declarações do primeiro ministro e da ministra da Coesão depois da cimeira da Guarda contrariaram frontalmente. Transcrevo o segundo objetivo definido no 7º relatório da CE de 13jan2021 sobre o desenvolvimento do mercado ferroviário:

“2. Improved cross-border rail services - Crossing internal EU borders must become a smoother process in order to increase rail’s modal share. Removal of interoperability barriers, deployment of the ERTMS, availability of appropriate rolling stock and availability of train drivers are fundamental to this goal. At the request of the European Parliament, the Commission launched a study on crossborder, long-distance connections, with a special focus on night train services; a report is expected by mid-2021.”

O mesmo estudo procura também demonstrar que, sendo verdade que o valor, em euros, das exportações portuguesas para França e Alemanha são superiores às exportações para Espanha, já no que diz respeito a toneladas transportadas, dois terços de todas as mercadorias que cruzam a fronteira por via terrestre destinam-se ao país vizinho. Penso que o estudo é anterior a 2018, numa altura em que as exportações para Espanha em toneladas ainda eram superiores relativamente ao conjunto França e Alemanha. No entanto o facto de atualmente ainda serem superiores para Espanha vem mostrar que são exportações de menor valor acrescentado. É nele que está o grande mercado para os transportadores e, não havendo um problema de bitola com Espanha, as decisões de investimento da IP centram-se no aumento de capacidade das linhas para comboios mais compridos, eliminação de rampas e electrificação. Notar que em termos de comparação de alternativas, o valor destes investimentos, deverá ser subtraído ao investimento em novas linhas UIC, isto é, são investimentos que sempre se fariam, qualquer que seja a bitola.

Já para a Europa além Pirenéus, os comboios de mercadorias têm de fazer o transbordo dos seus contentores na fronteira com a França. Uma operação que demora cerca de duas horas (numa viagem entre Portugal e França que nunca é inferior a 50 horas) e com um custo de 20 euros por cada contentor, que representa 1,3% dos cerca de 1500 euros que o cliente paga para o transportar. Citando o dr Carlos Vasconcelos (ver  «Solução competitiva na ferrovia» passa por eliminar constrangimentos já bem identificados | Revista Cargo    ) o custo poderá atingir 50 euros e o tempo de transbordo 4 a 6 horas, o que coincide com as referências ao “bottleneck” devido à rotura de cargas nos relatórios de ponto de situação do coordenador do corredor atlântico. De sublinhar

também a afirmação do dr Carlos Vasconcelos de que o transbordo em Irun é viável para 1 ou 2 serviços semanais, mas para 1 ou 2 serviços diários a solução será a plataforma de Vitória   ( ver     O transporte de mercadorias no Ano da Ferrovia | Mesa Redonda - YouTube  )  e que a bitola UIC em Portugal “seria ouro sobre azul” ( ver  Carlos Vasconcelos no Congresso ADFERSIT: «Não é por causa da bitola que a ferrovia não é competitiva» | Revista Cargo  ).

Enquanto não se mudarem as bitolas ou se reconverterem todas as frotas para eixos variáveis, o transporte de mercadorias funciona assim na fronteira – transbordo de contentores ou mudança dos rodados dos vagões. São esses os sistemas utilizados, por exemplo, na nova Rota da Seda que liga a China à Europa por comboio.

Na passada segunda-feira, 1 de Fevereiro, a Medway anunciava que concluiu “o primeiro transporte de um contentor proveniente da China para Portugal, por comboio, ao fim de uma viagem por nove países de dois continentes, que percorreu quatro bitolas diferentes”. O facto merece que congratulemos a Medway, mas note-se que da China a Portugal existem 3 bitolas diferentes e não quatro, com 3 transbordos (“conhecendo” o contentor 4 vagões diferentes): 1435 mm na China, 1520 mm no Kazaquistão, Russia e Bielorussia, 1435 mm novamente na Polonia até Irun e 1668 mm na península ibérica.

 




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