Carlos Cipriano é um defensor da estratégia oficial do
governo e da IP mas é um bom conhecedor da ferrovia, para além de bom
jornalista.
Defende a exclusividade da bitola ibérica e já afirmou que
antes de 40 anos não se justifica a bitola UIC em Portugal, mas penso que
devemos cingir a discussão a argumentos técnicos
e não fazer como alguns comentadores defensores da estratégia oficial que roçam
o insulto (já nos chamaram ignorantes de bancada, que temos uma obsessão ou que
já enjoa como se diz num comentário a este artigo).
Para mim os dois principais argumentos são o cumprimento das
diretivas comunitárias (implicando naturalmente o cofinanciamento e os prévios anteprojetos)
e a potenciação do aumento das exportações para a Europa. Penso que é no que
devemos insistir, compreendendo que também é natural que quem tenha estado
ligado à ferrovia nacional pense que se conseguem resolver as coisas com os
meios disponíveis, incluindo a bitola ibérica e os sistemas de transbordo, de
substituição de eixos ou bogies, e finalmente, de eixos variáveis.
Quanto à Medway e companhias colaborativas como a Takargo,
Transfesa, Captrain, recordo a afirmação do dr Carlos Vasconcelos, que enquanto
o tráfego transfronteiriço para a Europa for pequeno, até 2 serviços semanais, a
situação é sustentável. Só que nós queríamos que o tráfego aumentasse. Evidentemente
que duvido que a Medway compre vagões de eixos variáveis, mas as companhias
espanholas talvez vão nisso, para percursos específicos, sabendo que
Vitoria-Paris são menos de 800 km. Portanto a divergência é de tempo (Carlos
Cipriano) ou de volume de tráfego (Carlos Vasconcelos).
Vamos então aos meus comentários
Bruxelas financia projecto que resolve o problema da bitola nas mercadorias
pode resolver, mas não
completamente
Aposta na adaptação do material circulante é forma
rápida de alcançar a interoperabilidade porque a mudança de bitola “leva tempo,
é caro e cria interrupções temporárias no tráfego” ter uma frota de vagões de
eixos variáveis pode ser mais barato mas também é caro, nomeadamente quanto à
manutenção, e poderá não ser rápido (dependerá do tempo de fabrico e das
prioridades dos percursos decididas pelos operadores).
3 de Fevereiro de 2021, 6:30
A Comissão Europeia atribuiu 1,1 milhões de euros a um projecto espanhol que consiste em desenvolver vagões de mercadorias com eixos variáveis para poder circular entre bitolas (distância entre carris) diferentes.
Este sistema já existe
há várias décadas para os comboios de passageiros em Espanha, incluindo os de
alta velocidade, cujos eixos “encolhem” ou “esticam” para que as rodas se
adaptam à bitola em que circulam. O sistema existe também na Polónia
há vários anos (sistema SUW2000 nas fronteiras com a Bielorussia e Lituania),
incluindo para mercadorias, mas o sistema preferencialmente usado nas fronteiras
com a bitola russa é o transbordo ou mudança de eixos ou bogies, possivelmente por
limitações de velocidade máxima dos bogies de eixos variáveis.
Para as mercadorias o
princípio é o mesmo, mas há questões técnicas a resolver devido ao peso e,
sobretudo, à forma de produzir em massa - e a preços competitivos – vagões para
os operadores ferroviários de carga. Pontos fracos do sistema: maior peso (mais pesados cerca
de 7% do peso da carga útil segundo
Vicente Rallo, ver https://www.skyscrapercity.com/threads/tecnolog%C3%ADa-cambiadores-autom%C3%A1ticos-de-ancho-de-v%C3%ADa.1219965/page-20
) aumentando
assim o preço do transporte para longas distancias por menor carga transportada
para os mesmo quilómetros; manutenção
mais cara e exigente obrigando a um sistema automático de monitorização
do estado de funcionamento (esta desvantagem poderá não ser significativa
quando as diretivas obrigarem ao sistema de monitorização para os vagões de
eixos fixos para monitorização dos engates automáticos e do estado dos rolamentos
e desgaste das rodas) , obriga a equipamento e pessoal especializado, (por
exemplo para substituir rodados desgastados) o que levanta problemas no caso de
ocorrências a longa distancia (recorda-se que chega a haver vagões parados longe
da origem porque a cobertura de lona se desprendeu e isso é contra a segurança);
sendo os vagões de eixos variáveis e a sua manutenção mais caros, supondo uma
vida útil igual à dos vagões de eixos fixos, o preço por km resulta mais elevado,
o que agravará o preço para longas distancias (Madrid-Paris cerca de 1050 km)
acentuando assim a sua vocação para distancias curtas e médias.
O projecto espanhol
está a ser desenvolvido pelas empresas Azvi e Tria, em parceria com o gestor de
infra-estruturas ferroviárias Adif (homólogo da IP). Penso que já se pode considerar
desenvolvido, uma vez que já se concluíram os testes para dois tipos de rodas. O financiamento é do Connecting Europe
Facility (CEF).
Fonte oficial da
Comissão Europeia explica ao PÚBLICO que tanto a mudança de bitola, como a
utilização de material circulante com eixos variáveis, são opções válidas para
se alcançar a interoperabilidade ferroviária entre a Península Ibérica e o
resto da Europa. Parece que será
essa a posição da DG MOVE, mas não é o que está escrito nas diretivas que
referem explicitamente o caso semelhante dos países bálticos, em que a orientação
é mesmo construir linhas novas em bitola UIC. Aqui cabe recordar que o termo
mudança ou migração da bitola presta-se a confusões, o que as diretivas mandam
(atenção que os regulamentos têm força de lei) é usar a bitola UIC nas linhas
novas, não mudar as linhas de bitola ibérica para UIC. A experiencia que tive
no metro foi que, sempre que era necessária uma melhoria, era preferível minimizar
a intervenção no material circulante relativamente às infraestruturas. Cito o
4th Railway Package/Technical Pillar que inclui a diretiva 2016/797 para a
interoperabilidade, que restringe as regras nacionais face às regras
comunitárias por razões de normalização, e a diretiva 2016/2370 que manda abrir as redes à concorrência (regras
nacionais específicas como a bitola ibérica podem ser consideradas obstáculos à
concorrência) mantendo a liberdade dos Estados membros terem a operação e as
infraestruturas separadas ou não, de posse pública ou privada. Mas
refere que o material de bitola variável “ajuda a aumentar a rapidez para
alcançar a interoperabilidade, pois mudar a bitola nas linhas já existentes
leva tempo, é caro e cria interrupções temporárias no tráfego”. É inquestionável que os eixos
variáveis para mercadorias são uma boa solução dentro da peninsula ibérica para
o período em que coexistirão linhas de bitola ibérica a integrar nas redes TEN-T,
de ligação a portos ou plataformas
logísticas, por exemplo, a novas linhas UIC. No entanto, para este problema
também existe a solução das travessas para o terceiro carril. Quanto às
travessas polivalentes, vale o mesmo argumento de interrupções de tráfego
quando tiver de ser mudada a bitola. Para ligação em mercadorias do corredor
atlântico a França e Alemanha note-se que a plataforma logistica de Vitoria,
quando estiver ligada a Hendaye por UIC, poderá tornar competitivo,
relativamente aos eixos variáveis, o transbordo entre vagões fixos de bitola
ibérica e vagões fixos de bitola UIC por não exigir o sincronismo entre os dois
comboios e porque o custo do transporte por km dos vagões de eixos variáveis é
superior aos de eixos fixos ( embora o ideal fosse o percurso desde Sines ser
em bitola UIC).
Este projecto tem
também um apoio de 6,4 milhões de euros do Estado espanhol, através do
Ministério da Ciência e Inovação. Segundo o Adif, “este sistema resolve o
problema da existência de redes com diferentes tipos de bitola”, dado que “um
comboio de mercadorias equipado com vagões de eixos variáveis pode circular
entre as diferentes fronteiras com bitolas distintas”.
Na UE, além da
Península Ibérica, só os países bálticos, a Finlândia e a Irlanda têm
distâncias entre carris diferentes do resto das redes. No caso da Finlandia e dos países
bálticos, estão empenhados no projeto Rail Baltica, com todas as caraterísticas
da interoperabilidade dos regulamentos, a ligar numa primeira fase as capitais
da Estónia. Letónia e Lituania. No caso da Irlanda, é curioso como uma das consequências
do Brexit foi integrar a Irlanda, através de ligações por ferry, no corredor
atlântico, será que vão manter a sua bitola de 1600 mm ou farão o up-grade para
1435 mm? Juntamente com os acrescentos ao corredor atlântico propostos por Espanha para a Galiza, Astúrias
e Leon, ao mesmo tempo que privilegia os investimentos no corredor mediterrânico,
são ameaças ao cofinanciamento para as ligações de Portugal à Europa além
Pirineus
A Espanha está muito
longe de mudar a bitola das suas linhas para o formato europeu, pelo que não
faz sentido Portugal investir milhões a mudar a bitola ou a construir novas
linhas em bitola europeia que não teriam continuidade no lado espanhol. Mais uma vez se sublinha que o
objetivo principal a curto e médio prazo não é mudar a bitola de 1668 mm para 1435
mm, mas construir linhas novas com 1435 mm, para passageiros com velocidade competitiva
com o avião, e para mercadorias com pendentes inferiores a 1,25 % (utilizando a
mesma linha da alta velocidade quando possível), e que as linhas novas dos
corredores atlântico e mediterrânico fazem parte do regulamento 1315/2013 com o
objetivo 2030.
O país vizinho só
possui linhas com bitola europeia para serviço de passageiros (cera de 3.000 km e em
expansão), com excepção de um pequeno troço para mercadorias entre o porto de Barcelona e a fronteira francesa, o
qual tem tido uma utilização muito reduzida. E a construção de novas linhas
para mercadorias em bitola europeia, em curso no País Basco desde 2006, tem
vindo a atrasar-se e só deverá estar concluída em 2028 (a informação de que disponho é
2026, e para o corredor mediterrânico, ligação de Valencia, 2025; a considerar
ainda para a ligação aos portos das Astúrias, vários troços em construção).
Para a Infraestruturas
de Portugal (IP), há outros obstáculos a resolver que são mais importantes
do que a bitola a fim de se conseguir uma maior
interoperabilidade e consequente redução do custo de transporte de mercadorias.
Entre eles, estão a electrificação das linhas e o comprimento dos comboios (quanto
mais compridos, mais barato se torna o custo de cada contentor transportado).
Num estudo cedido ao PÚBLICO que compara os custos de um contentor sobre carris
entre Leixões e Paris e Mannheim, a empresa estima que o aumento do comprimento
dos comboios pode reduzir o custo em 10% e 12%, respectivamente, para aqueles
dois destinos. Segue-se a bitola, com poupanças de 7% e 6%. Nesse mesmo estudo, a
eletrificação poupava respetivamente 2% e 1% e o ERTMS 2% e 2% . Em análises
multiccritérios não se deve reduzir os fatores de avaliação, Tanto a
eletrificação como o ERTMS são prioritários do ponto de vista da
interoperabilidade, mas se se fosse a utilizar este argumento, a bitola seria “mais
prioritária”. Esta estimativa ilustra no entanto bem o facto de resolver o problema
dos estrangulamentos para as anossas exportações para a Europa além Pirineus.
No entanto, há ainda a
optimização de processos ligada as questões administrativas que não exigem
investimentos em infra-estruturas e que podem reduzir os custos entre 13% a
19%. Tudo isto para concluir que a mudança de bitola está longe de ser uma
prioridade. A simples
estimativa de economia de 7% e 6% para Paris e Mannheim contraria a classificação
“ está longe”.
“Mudar a bitola
implica custos de milhares de milhões, enquanto os investimentos em material
circulante de eixos variáveis se medem em dezenas de milhões”, diz Carlos
Fernandes, vice-presidente da IP. Razão pela qual entende que “a migração da
bitola em Portugal deve ser cuidadosamente ponderada e articulada com os
desenvolvimentos em Espanha”. Mais uma vez se recorda que o objetivo a curto e médio prazo não é “migrar”,
é cumprir o regulamento 1315/2013 para 2030. E inteiramente de acordo, a
coordenação com Espanha é imperativa, o que as declarações do primeiro ministro
e da ministra da Coesão depois da cimeira da Guarda contrariaram frontalmente. Transcrevo
o segundo objetivo definido no 7º relatório da CE de 13jan2021 sobre o
desenvolvimento do mercado ferroviário:
“2. Improved cross-border rail
services - Crossing internal EU borders must become a smoother process in order
to increase rail’s modal share. Removal of interoperability barriers,
deployment of the ERTMS, availability of appropriate rolling stock and
availability of train drivers are fundamental to this goal. At the request of
the European Parliament, the Commission launched a study on crossborder,
long-distance connections, with a special focus on night train services; a
report is expected by mid-2021.”
O mesmo estudo procura
também demonstrar que, sendo verdade que o valor, em euros, das exportações
portuguesas para França e Alemanha são superiores às exportações para Espanha,
já no que diz respeito a toneladas transportadas, dois terços de todas as
mercadorias que cruzam a fronteira por via terrestre destinam-se ao país
vizinho. Penso que o
estudo é anterior a 2018, numa altura em que as exportações para Espanha em
toneladas ainda eram superiores relativamente ao conjunto França e Alemanha. No
entanto o facto de atualmente ainda serem superiores para Espanha vem mostrar
que são exportações de menor valor acrescentado. É
nele que está o grande mercado para os transportadores e, não havendo um
problema de bitola com Espanha, as decisões de investimento da IP centram-se no
aumento de capacidade das linhas para comboios mais compridos, eliminação de
rampas e electrificação. Notar que em
termos de comparação de alternativas, o valor destes investimentos, deverá ser subtraído
ao investimento em novas linhas UIC, isto é, são investimentos que sempre se
fariam, qualquer que seja a bitola.
Já para a Europa além
Pirenéus, os comboios de mercadorias têm de fazer o transbordo dos seus
contentores na fronteira com a França. Uma operação que demora cerca de duas
horas (numa viagem entre Portugal e França que nunca é inferior a 50 horas) e
com um custo de 20 euros por cada contentor, que representa 1,3% dos cerca de
1500 euros que o cliente paga para o transportar. Citando o dr Carlos Vasconcelos
(ver «Solução
competitiva na ferrovia» passa por eliminar constrangimentos já bem
identificados | Revista Cargo ) o custo poderá atingir 50 euros e o tempo de
transbordo 4 a 6 horas, o que coincide com as referências ao “bottleneck”
devido à rotura de cargas nos relatórios de ponto de situação do coordenador do
corredor atlântico. De sublinhar
também a afirmação do dr Carlos Vasconcelos de que o transbordo em Irun é viável
para 1 ou 2 serviços semanais, mas para 1 ou 2 serviços diários a solução será
a plataforma de Vitória ( ver O
transporte de mercadorias no Ano da Ferrovia | Mesa Redonda - YouTube ) e que a bitola UIC em Portugal “seria
ouro sobre azul” ( ver Carlos
Vasconcelos no Congresso ADFERSIT: «Não é por causa da bitola que a ferrovia
não é competitiva» | Revista Cargo ).
Enquanto não se
mudarem as bitolas ou se reconverterem todas as frotas para eixos variáveis, o
transporte de mercadorias funciona assim na fronteira – transbordo de
contentores ou mudança dos rodados dos vagões. São esses os sistemas
utilizados, por exemplo, na nova Rota da Seda que liga a China à Europa por
comboio.
Na passada
segunda-feira, 1 de Fevereiro, a Medway anunciava que concluiu “o primeiro
transporte de um contentor proveniente da China para Portugal, por comboio, ao
fim de uma viagem por nove países de dois continentes, que percorreu quatro
bitolas diferentes”. O facto merece
que congratulemos a Medway, mas note-se que da China a Portugal existem 3
bitolas diferentes e não quatro, com 3 transbordos (“conhecendo” o contentor 4
vagões diferentes): 1435 mm na China, 1520 mm no Kazaquistão, Russia e Bielorussia,
1435 mm novamente na Polonia até Irun e 1668 mm na península ibérica.
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