quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Declarações públicas do governo sobre o problema da bitola

 

Tanto quanto me é dado perceber, as afirmações mais claras sobre a política ferroviária do governo português, no que concerne às condições de interoperabilidade conforme a regulamentação comunitária, são as do anterior secretário de Estado das infraestruturas do XXI governo,  ao dizer que “Portugal terá a bitola europeia quando Espanha o decidir” (faltando acrescentar, mais o tempo necessário para a elaboração dos projetos, concursos e obra) .

Também o senhor primeiro ministro do XXII governo por diversas vezes declarou a sua oposição ao planeamento das ligações à Europa em bitola UIC:

- no plenário da Assembleia da República em fevereiro de 2019 – “a alta velocidade ferroviária em Portugal será um tabu por muito tempo”:

http://www.canal.parlamento.pt/?cid=3658&title=reuniao-plenaria

- em entrevista num canal televisivo em agosto de 2019: 

https://eco.sapo.pt/2019/08/06/antonio-costa-diz-que-tgv-e-um-tema-bastante-toxico-em-portugal/ )

- numa entrevista ao Jornal de Notícias em fevereiro de 2020:

https://eco.sapo.pt/2020/02/02/antonio-costa-quer-lancar-bases-e-discutir-alta-velocidade-ferroviaria-no-pos-2027/

 

O senhor primeiro ministro recusa deste modo a questão da bitola UIC, adiando a sua discussão, na melhor das hipóteses, para 2026  ( contudo, em 2017, a sua previsão era o início do debate sobre a bitola UIC em 2023            https://fcsseratostenes.blogspot.com/2017/04/investimentos-em-ferrovia-situacao-em.html), não querendo assim utilizar o quadro comunitário 2021-2027 para a ferrovia interoperável (o que não parece compatível com a disponibilidade dos fundos CEF se houver projeto e análise de custos benefícios)  mas aceitando que se recorra ao quadro 2027-2033.

Por isso, admite que até lá se possa debater um novo traçado, mas “quando houver condições políticas” para tal.

Isto é, por um lado quer (quando houver condições politicas!) e por outro não quer (por não haver condições políticas? ).  Poderia ser caso de perguntar à AR o que fazer.

 

É provável que o primeiro ministro, sendo de formação jurídica, não seja sensível a uma urgência escondida desta questão, independente até da problemática de estímulo à exportação que, por menores custos operacionais, as ligações à Europa em bitola europeia teriam. É que as ligações ferroviárias à Europa além Pirineus estão definidas no mapa das redes transeuropeias TEN-T no regulamento 1315/2013 cuja revisão está agendada para 2023.

Isto é, o prazo da revisão é incompatível com o adiamento da discussão implícito no discurso oficial.

 

Curiosamente, da parte do senhor ministro das infraestruturas, conhecido pela sua frontalidade e voluntarismo, conhecem-se apenas algumas declarações públicas explicitamente sobre a questão da bitola. Aliás, não é feliz a restrição da discussão da interoperabilidade definida no regulamento 1315/2013 à questão da bitola, apenas um dos componentes da interoperabilidade, mas caiu-se nela, empenhando-se os defensores da poltica governamental em desvalorizar os inconvenientes de manter uma única bitola, a ibérica, e a pretextar que existem soluções. As declarações publicas do senhor ministro confirmam essa defesa da exclusividade da bitola ibérica.

Em abril de 2019, numa audição na Assembleia da Republica da Comissão de Economia , Inovação e Obras Publicas, sobre o PNI 2030, o senhor ministro considerou que o tema da bitola era um fetiche de quem não quer discutir a ferrovia:

http://webrails.tv/tv/?p=39958

 

Na verdade, os técnicos que assessoram ou aconselham o senhor ministro, que é economista de formação, não o enganaram, uma rede peninsular de bitola ibérica é perfeitamente defensável e até é possível a sua interligação com a Europa além Pirineus, reativando o comboio DB Schenker de 2013, extinto por dificuldades de concessão de canais pela rede francesa, dificuldades essas acrescidas pela falta de sincronismo entre os dois comboios, o de bitola ibérica e o de bitola UIC. Essa reativação encontra-se neste momento em estudo pela Medway, em contacto com possíveis parceiros de operação na rede francesa e alemã.

Julgamos contudo que os assessores ou aconselhadores do senhor ministro não realçaram devidamente o menor rendimento e consequente diminuição de competitividade no transporte de mercadorias para longas distancias com bitola ibérica. Citam mutas vezes um estudo em que as correções mais importantes para melhoria do rendimento do transporte nas redes ibéricas são a eliminação das pendentes (atualmente há troços que exigem segunda locomotiva) e o alargamento dos cruzamentos em via única para comboios de 740m , mas não chamam a atenção para que o problema dos 740 m estaria resolvido por si em vias duplas novas, e para que a diferença de bitolas penaliza efetivamente as longas distancias.

Este argumento das longas distancias é válido tanto para o transbordo de contentores e respetivos procedimentos administrativos em Irun como para a solução de eixos variáveis para mercadorias (para passageiros é uma solução já clássica, embora de fabricantes espanhois).

 

Os assessores ou aconselhadores falam em 2 horas para o transbordo em Irun e citam o sucesso da ligação China-Duisburg. No entanto, a análise da VTM (Sena da Silva/Linkedin) sobre as dificuldades do comboio da DB Schenker em 2013 refere que a viagem Portugal-Alemanha (2700 km) fazia-se em 3 dias com 1 transbordo, o que compara com os 10.300 km e 16 dias de China-Duisburg com 2 transbordos (se contentores, senão mudança de bogies). Na verdade os franceses dizerem que só dão canais Hendaye-Bordeus em 2032 é contra as regras da UE e deve ser denunciado. Sobre a "facilidade" do transbordo ver na pág.41 do relatório de dez2014 do corredor atlantico-core network, onde se estimam 6 horas só para o transbordo e mais 1h30 para as formalidades de obtenção de canal:

http://cip.org.pt/wp-content/uploads/2017/01/Ref-85-Corredor-Atlantico-da-Core-Network-Relatorio-Final-Dezembro-de-2014.pdf

 

No caso de eixos variáveis de mercadorias, recentemente homologados, não é dado destaque ao objetivo principal dos fabricantes (Azvi-Ogi-Tria) e detentor da patente, ADIF, que é o de assegurar a ligação entre a rede ibérica e a crescente rede UIC dentro da própria Espanha. Tal como as travessas de 4 e de 3 fixações, de instalação obrigatória por decreto do ministério de Fomento em qualquer processo construtivo, os eixos variáveis são uma solução pontual e transitória não vocacionada para longas distancias (maior peso e subsequente menor carga útil, maior complexidade de monitorização de operacionalidade, dificuldades de assistencia técnica à distancia, o que é aliás um requisito comunitário).

 

As condenações dos críticos da bitola única ibérica pelos governantes não serão graves, mas são repetitivas, como por exemplo no almoço do Clube de Empresários em fevereiro de 2020, em que o senhor ministro afirmou que estava farto de ouvir falar do problema da bitola, que era uma falsa questão e “que não há nenhum problema com a bitola”.

https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/pedro-nuno-santos-serve-discurso-socialista-em-almoco-de-empresarios

 

Em julho de 2020 um grupo de cidadãos enviou uma carta para a comissária europeia dos transportes, Adina Valean manifestando a sua preocupação pelos atrasos na implementação das interligações ferroviárias à Europa além Pirineus:

https://manifestoferrovia.blogspot.com/2020/08/carta-para-comissaria-europeia-de.html

No seguimento da divulgação da carta pela comunicação social, a TVI24 emitiu uma reportagem sobre o problema da bitola, seguido de um debate com a presença do administrador da Medway Carlos Vasconcelos e o empresário Henrique Neto. Por sua vez o jornal on line “i” publicou um artigo sobre o tema que suscitou uma nota informativa do MIH. Ver:

https://manifestoferrovia.blogspot.com/2020/09/debate-na-tvi24-sobre-bitola-europeia-e.html

No início de setembro foi recebida a resposta da DG MOVE em nome da comissária Adina Valean (ver   https://manifestoferrovia.blogspot.com/2020/09/resposta-da-dg-move-em-nome-da.html  ).

De assinalar que não foi respondida a questão da certificação como interoperável da bitola ibérica e que se trata de uma resposta diplomática.

 Por um lado  afirma a intenção de cumprir o plano das redes transeuropeias TEN-T em bitola UIC ( “The new rail lines which are or will be constructed and the rail lines which are or will be upgraded on that Corridor by 2030 … are creating a UIC gauge rail network in Portugal”), o que a realidade não confirma dada a inexistencia de projetos e de um plano coordenado Portugal-Espanha-França.

 Por outro lado invoca os velhos argumentos do governo português que não é desejável a transição de toda a rede ibérica existente para UIC (que ninguém propôs) e que existem outros parâmetros de interoperabilidade mais importantes, como se a interoperabilidade não fosse um bloco.

Invocam-se ainda as soluções vocacionadas para o período de desenvolvimento das redes UIC, como sejam as travessas polivalentes e de três carris, e os eixos variáveis para passageiros e para mercadorias, reconhecidamente não recomendáveis para longas distancias.

 Preocupante, por omitir qualquer calendarização, é o espírito desculpabilizante e contemporizador com a politica do governo português embora pretextando uma cooperação internacional que não se vislumbra (“high degree of dedication from both the Portuguese and Spanish Governments and Infrastructure Managers”).

 

Num momento em que se aguarda do governo português a clarificação, mediante debate público e na Assembleia da Republica, do programa de recuperação e do plano PNI2030 a submeter aos apoios comunitários, verifica-se que a discussão sobre este tema deve prosseguir, embora sem nenhuns indícios de mudança de política oficial, pese embora a urgência face ao atraso do corredor atlântico interoperável relativamente a 2030 

Apesar da negação da existência do problema da bitola, o próprio ministro reconheceu um pequeno problema, é que atrasa o fornecimento de novo material circulante (seria irresponsável um fabricante que não submetesse a ensaios adicionais o novo material circulante, projetado para bitola 1435 mm, mas equipado com bogies para 1668 mm).

https://www.dinheirovivo.pt/entrevistas/quem-ganhar-concursos-para-novo-material-circulante-da-cp-vai-ter-de-instalar-fabrica-em-portugal/

 

É muito curiosa a mudança de posição do prof Costa Silva, depois de na versão inicial do seu plano defender as ligações interoperáveis à Europa, vir dizer que, não sendo especialista, os técnicos assessores ou aconselhadores o tinham esclarecido que a tecnologia tinha evoluído muito e agora “estavam disponíveis aparelhos” que permitiam a manutenção da bitola ibérica. Julga-se que se referia aos eixos variáveis para mercadorias, respetivos intercambiadores e às travessas polivalentes.

 

Será assim uma expressão e a confirmação da posição do governo português, em claro incumprimento do compromisso com o plano das redes transeuropeias TEN-T. Coisa que periodicamente e sem sucesso é lembrada ao governo português pela UE, como por exemplo através do Tribunal de Contas Europeu -ECA), em julho de 2018:

https://www.eca.europa.eu/Lists/ECADocuments/INSR18_19/INSR_HIGH_SPEED_RAIL_PT.pdf

ou pelo pormenorizado relatório de dezembro de 2017 de coordenação do corredor atlântico,

https://ec.europa.eu/transport/sites/transport/files/atl_corridor_final_report_2017.pdf

na página 185 (ponto 10.3): “the most important interventions include: the deployment of UIC track gauge on the Iberian Peninsula … Beyond signalling and electrification, a special attention has to be paid to the gauge issue in the Iberian Peninsula, where delivering interoperability means agreeing on the deployment of UIC gauge along the Corridor lines, therefore going beyond the current planning and project listed.”

ou pelo diretor da DG Regio, Rudolf Niessler, em março de 2019, lamentando a perda do cofinanciamento através do quadro 2021-2027:

https://eco.sapo.pt/2019/03/26/portugal-ja-desistiu-da-alta-velocidade-mas-bruxelas-nao/

 

ou pela DG MOVE no seu relatório também de março de 2019:

https://ec.europa.eu/transport/sites/transport/files/2019-transport-in-the-eu-current-trends-and-issues.pdf )

 ou pela própria CE, em fevereiro de 2020 (ver págs. 66 e 83):

https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/2020-european_semester_country-report-portugal_pt.pdf

 

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