Tanto quanto me é dado perceber, as afirmações mais claras
sobre a política ferroviária do governo português, no que concerne às condições
de interoperabilidade conforme a regulamentação comunitária, são as do anterior
secretário de Estado das infraestruturas do XXI governo, ao dizer que “Portugal terá a bitola europeia
quando Espanha o decidir” (faltando acrescentar, mais o tempo necessário para a
elaboração dos projetos, concursos e obra) .
Também o senhor primeiro ministro do XXII governo por
diversas vezes declarou a sua oposição ao planeamento das ligações à Europa em
bitola UIC:
- no plenário da Assembleia da República em fevereiro de 2019 – “a
alta velocidade ferroviária em Portugal será um tabu por muito tempo”:
http://www.canal.parlamento.pt/?cid=3658&title=reuniao-plenaria
- em entrevista num canal televisivo em agosto de
2019:
https://eco.sapo.pt/2019/08/06/antonio-costa-diz-que-tgv-e-um-tema-bastante-toxico-em-portugal/ )
- numa entrevista ao Jornal de Notícias
em fevereiro de 2020:
O senhor
primeiro ministro recusa deste modo a
questão da bitola UIC, adiando a sua discussão, na melhor das hipóteses, para
2026 ( contudo, em 2017, a sua previsão era o início do debate sobre
a bitola UIC em 2023 https://fcsseratostenes.blogspot.com/2017/04/investimentos-em-ferrovia-situacao-em.html), não querendo assim utilizar o quadro
comunitário 2021-2027 para a ferrovia interoperável (o que não parece
compatível com a disponibilidade dos fundos CEF se houver projeto e análise de
custos benefícios) mas aceitando que se
recorra ao quadro 2027-2033.
Por isso, admite que até lá se possa
debater um novo traçado, mas “quando houver condições políticas” para tal.
Isto é, por um lado quer (quando houver
condições politicas!) e por outro não quer (por não haver condições políticas? ).
Poderia ser caso de perguntar à AR o que
fazer.
É provável que o primeiro ministro, sendo
de formação jurídica, não seja sensível a uma urgência escondida desta questão,
independente até da problemática de estímulo à exportação que, por menores
custos operacionais, as ligações à Europa em bitola europeia teriam. É que as
ligações ferroviárias à Europa além Pirineus estão definidas no mapa das redes
transeuropeias TEN-T no regulamento 1315/2013 cuja revisão está agendada para
2023.
Isto é, o prazo da revisão é incompatível
com o adiamento da discussão implícito no discurso oficial.
Curiosamente, da parte do senhor ministro
das infraestruturas, conhecido pela sua frontalidade e voluntarismo,
conhecem-se apenas algumas declarações públicas explicitamente sobre a questão
da bitola. Aliás, não é feliz a restrição da discussão da interoperabilidade
definida no regulamento 1315/2013 à questão da bitola, apenas um dos
componentes da interoperabilidade, mas caiu-se nela, empenhando-se os
defensores da poltica governamental em desvalorizar os inconvenientes de manter
uma única bitola, a ibérica, e a pretextar que existem soluções. As declarações
publicas do senhor ministro confirmam essa defesa da exclusividade da bitola
ibérica.
Em abril de 2019, numa audição na
Assembleia da Republica da Comissão de Economia , Inovação e Obras Publicas,
sobre o PNI 2030, o senhor ministro considerou que o tema da bitola era um
fetiche de quem não quer discutir a ferrovia:
http://webrails.tv/tv/?p=39958
Na verdade, os técnicos que assessoram ou
aconselham o senhor ministro, que é economista de formação, não o enganaram,
uma rede peninsular de bitola ibérica é perfeitamente defensável e até é
possível a sua interligação com a Europa além Pirineus, reativando o comboio DB
Schenker de 2013, extinto por dificuldades de concessão de canais pela rede
francesa, dificuldades essas acrescidas pela falta de sincronismo entre os dois
comboios, o de bitola ibérica e o de bitola UIC. Essa reativação encontra-se
neste momento em estudo pela Medway, em contacto com possíveis parceiros de
operação na rede francesa e alemã.
Julgamos contudo que os assessores ou
aconselhadores do senhor ministro não realçaram devidamente o menor rendimento
e consequente diminuição de competitividade no transporte de mercadorias para
longas distancias com bitola ibérica. Citam mutas vezes um estudo em que as
correções mais importantes para melhoria do rendimento do transporte nas redes
ibéricas são a eliminação das pendentes (atualmente há troços que exigem
segunda locomotiva) e o alargamento dos cruzamentos em via única para comboios
de 740m , mas não chamam a atenção para que o problema dos 740 m estaria
resolvido por si em vias duplas novas, e para que a diferença de bitolas
penaliza efetivamente as longas distancias.
Este argumento das longas distancias é
válido tanto para o transbordo de contentores e respetivos procedimentos
administrativos em Irun como para a solução de eixos variáveis para mercadorias
(para passageiros é uma solução já clássica, embora de fabricantes espanhois).
Os assessores ou aconselhadores falam em 2 horas para o transbordo em Irun e citam
o sucesso da ligação China-Duisburg. No entanto, a análise da VTM (Sena da
Silva/Linkedin) sobre as dificuldades do comboio da DB Schenker em 2013 refere que a viagem Portugal-Alemanha (2700 km)
fazia-se em 3 dias com 1 transbordo, o que compara com os 10.300 km e 16 dias
de China-Duisburg com 2 transbordos (se contentores, senão mudança de bogies).
Na verdade os franceses dizerem que só dão canais Hendaye-Bordeus em 2032 é
contra as regras da UE e deve ser denunciado. Sobre a "facilidade" do
transbordo ver na pág.41 do relatório de dez2014 do corredor atlantico-core
network, onde se estimam 6 horas só para o transbordo e mais 1h30 para as
formalidades de obtenção de canal:
No caso de
eixos variáveis de mercadorias, recentemente homologados, não é dado destaque
ao objetivo principal dos fabricantes (Azvi-Ogi-Tria) e detentor da patente,
ADIF, que é o de assegurar a ligação entre a rede ibérica e a crescente rede
UIC dentro da própria Espanha. Tal como as travessas de 4 e de 3 fixações, de
instalação obrigatória por decreto do ministério de Fomento em qualquer
processo construtivo, os eixos variáveis são uma solução pontual e transitória
não vocacionada para longas distancias (maior peso e subsequente menor carga
útil, maior complexidade de monitorização de operacionalidade, dificuldades de
assistencia técnica à distancia, o que é aliás um requisito comunitário).
As condenações dos críticos da bitola única
ibérica pelos governantes não serão graves, mas são repetitivas, como por
exemplo no almoço do Clube de Empresários em fevereiro de 2020, em que o senhor
ministro afirmou que estava farto de ouvir falar do problema da bitola, que era
uma falsa questão e “que não há nenhum problema com a bitola”.
Em julho de
2020 um grupo de cidadãos enviou uma carta para a comissária europeia dos
transportes, Adina Valean manifestando a sua preocupação pelos atrasos na
implementação das interligações ferroviárias à Europa além Pirineus:
https://manifestoferrovia.blogspot.com/2020/08/carta-para-comissaria-europeia-de.html
No seguimento
da divulgação da carta pela comunicação social, a TVI24 emitiu uma reportagem
sobre o problema da bitola, seguido de um debate com a presença do
administrador da Medway Carlos Vasconcelos e o empresário Henrique Neto. Por
sua vez o jornal on line “i” publicou um artigo sobre o tema que suscitou uma
nota informativa do MIH. Ver:
https://manifestoferrovia.blogspot.com/2020/09/debate-na-tvi24-sobre-bitola-europeia-e.html
No início de
setembro foi recebida a resposta da DG MOVE em nome da comissária Adina Valean
(ver https://manifestoferrovia.blogspot.com/2020/09/resposta-da-dg-move-em-nome-da.html ).
De assinalar
que não foi respondida a questão da certificação como interoperável da bitola
ibérica e que se trata de uma resposta diplomática.
Por um lado afirma a intenção de cumprir o plano das redes transeuropeias TEN-T em bitola UIC ( “The new rail lines which are or will be constructed and the rail lines which are or will be upgraded on that Corridor by 2030 … are creating a UIC gauge rail network in Portugal”), o que a realidade não confirma dada a inexistencia de projetos e de um plano coordenado Portugal-Espanha-França.
Invocam-se ainda as soluções vocacionadas
para o período de desenvolvimento das redes UIC, como sejam as travessas
polivalentes e de três carris, e os eixos variáveis para passageiros e para
mercadorias, reconhecidamente não recomendáveis para longas distancias.
Num momento em que se aguarda do governo português a clarificação, mediante debate público e na Assembleia da Republica, do programa de recuperação e do plano PNI2030 a submeter aos apoios comunitários, verifica-se que a discussão sobre este tema deve prosseguir, embora sem nenhuns indícios de mudança de política oficial, pese embora a urgência face ao atraso do corredor atlântico interoperável relativamente a 2030
Apesar da negação da existência do problema
da bitola, o próprio ministro reconheceu um pequeno problema, é que atrasa o
fornecimento de novo material circulante (seria irresponsável um fabricante que
não submetesse a ensaios adicionais o novo material circulante, projetado para
bitola 1435 mm, mas equipado com bogies para 1668 mm).
É muito curiosa a mudança de posição do
prof Costa Silva, depois de na versão inicial do seu plano defender as ligações
interoperáveis à Europa, vir dizer que, não sendo especialista, os técnicos
assessores ou aconselhadores o tinham esclarecido que a tecnologia tinha
evoluído muito e agora “estavam disponíveis aparelhos” que permitiam a
manutenção da bitola ibérica. Julga-se que se referia aos eixos variáveis para mercadorias,
respetivos intercambiadores e às travessas polivalentes.
Será assim uma expressão e a confirmação da
posição do governo português, em claro incumprimento do compromisso com o plano
das redes transeuropeias TEN-T. Coisa que periodicamente e sem sucesso é
lembrada ao governo português pela UE, como por exemplo através do Tribunal de
Contas Europeu -ECA), em julho de 2018:
https://www.eca.europa.eu/Lists/ECADocuments/INSR18_19/INSR_HIGH_SPEED_RAIL_PT.pdf
ou pelo pormenorizado relatório de dezembro de 2017 de coordenação do corredor atlântico,
na página 185
(ponto 10.3): “the most important interventions include: the deployment of UIC
track gauge on the Iberian Peninsula … Beyond signalling and electrification, a
special attention has to be paid to the gauge issue in the Iberian Peninsula,
where delivering interoperability means agreeing on the deployment of UIC gauge
along the Corridor lines, therefore going beyond the current planning and
project listed.”
ou pelo diretor da DG Regio, Rudolf
Niessler, em março de 2019, lamentando a perda do cofinanciamento através do
quadro 2021-2027:
https://eco.sapo.pt/2019/03/26/portugal-ja-desistiu-da-alta-velocidade-mas-bruxelas-nao/
ou pela DG MOVE no seu relatório também de março de 2019:
https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/2020-european_semester_country-report-portugal_pt.pdf
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